Putin segundo ele mesmo

Putin, “comunista”?
Parem com isso, por favor!
E leiam os discursos dele!

Fonte: El Manifiesto. Autor: Sertório. Título original: Putin, el verbo y la idea. Data de publicação: 6 de maio de 2023. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.

A editora Ediciones Fides acaba de publicar Putin: escritos y discursos, uma interessante seleção dos textos mais importantes do presidente russo, com datação de fevereiro de 2000 até dezembro de 2022, ou seja, praticamente todo o período de governo do dirigente do Kremlin. O livro traz como introdução estudo de Juan António Aguilar — um dos nossos melhores especialistas em Rússia e fundador do Instituto Espanhol de Geopolítica — que merece ser lido, sobretudo pelo profundo conhecimento do autor sobre a política russa, país que visitou muitas vezes e com o qual mantém intenso contato. Nas suas páginas está retratado o Putin real, bastante diferente da imagem do homem canceroso, doido e fanático como o pintam os midiadores do estabilismo ocidental para o próprio deleite.

Não obstante, é diretamente do que fala e faz o presidente russo que podemos extrair as mais significativas conclusões sobre a sua personalidade e a sua política. Em fevereiro de 2000, logo depois de sua ascensão ao poder, escreveu uma Carta aberta aos seus eleitores que era uma antecipação da sua forma de atuar: “Continuar na evasiva é muito mais perigoso do que aceitar o desafio”. A Carta continha uma mensagem muitas vezes reiterada durante as últimas duas décadas, dizendo que só um Estado forte podia livrar a Rússia do desmantelamento a que está submetida pelos experimentos liberais de Yeltsin e seus oligarcas. Daí o seu apelo à cidadania:

“Provavelmente, cada um de vocês tenha a sua própria ideia quanto ao que possa estar na raiz dos nossos reveses e erros de cálculo. Porém, já é hora de os cidadãos da Rússia entrarmos em acordo sobre o que esperar do Estado e como apoiá-lo. Agora estou falando de nossas prioridades nacionais. Sem isto, voltaremos a perder tempo em vão, e os demagogos irresponsáveis decidirão nosso destino”.

A restauração do Estado russo e a defesa de seus interesses contra as imposições externas é o norte da política de Putin. Também marca o terreno ante a intromissão do Ocidente na área de influência de Moscou:

“A Rússia já não é o mapa truncado da União Soviética […]. Um grande país aprecia sua liberdade e respeita a dos demais. Não é razoável ter medo de uma Rússia forte, mas o inimigo que nos provoca deve saber que brinca com fogo”.

A respeito das relações da Rússia com a União mal denominada “Europeia”, triste é ler este texto de 2006:

“A Rússia, tanto em seu espírito quanto nas suas tradições históricas, é parte da ‘família europeia’. Não buscamos ingressar na União Europeia. Não obstante, considerando a questão de uma perspectiva de mais longo prazo, não vejo áreas adversas a uma associação estratégica equitativa, a uma associação baseada em aspirações e valores comuns”.

Naquela altura, Putin ainda acreditava numa confluência de interesses mutuamente benéfica entre a Rússia e a União mal denominada “Europeia”. Tratar-se-ia de um pacto entre iguais que livraria a Rússia de condição subalterna na relação com os prepotentes anglo-saxões. Atualmente, daquela aproximação só restam as cinzas. E do sonho de um espaço eurasiático integrado do arquipélago dos Açores a Vladivostoque, o que se dirá, então?

Convertida no quintal do império ianque, Europa é agora só o nome de um defunto.

Em outro discurso, este de 30 de setembro de 2022, quando foi da admissão das repúblicas de Lugansque, Donétisque, Zaporíjia e Quérson na Federação Russa, Putin enfatizou que as elites dos Estados Unidos estavam empenhadas não só em abater a Rússia, mas também em “destruir os Estados nacionais”. Ele continuou: “Isto se aplica à Europa, isto ameaça a identidade da França, da Itália, da Espanha, isto é um ataque a outros países de longa tradição histórica”.

E, ainda nessa mesma mensagem, acrescentou:

Washington exige cada vez mais sanções contra a Rússia, e a maioria dos obedientes políticos europeus está de acordo com a agressão. Eles sabem, claramente, que os Estados Unidos, levando a UE a não comprar energia e outros recursos de fornecedores russos, causam a desindustrialização da Europa […]. As elites europeias têm plena consciência do que se passa, mas preferem servir a interesses inconfessáveis de estranhos. Mais do que subserviência, existe aí uma ação direta de traição contra os seus povos”.

A opinião de Putin sobre o Ocidente mudou radicalmente nos últimos anos, e não só por considerações de natureza estratégica.“Observamos com surpresa os processos tendo lugar em países que por séculos gozavam do autoconceito que os colocava na vanguarda do progresso. Evidentemente, entretanto, os transtornos socioculturais nos Estados Unidos e na Europa Ocidental não são assunto nosso, nós não nos imiscuímos nisso aí”. Apesar da ressalva, o presidente russo não deixou de manifestar o seu espanto diante da insistência com que os ocidentais se entregam à teoria e à prática insanas do “cancelamento agressivo de páginas inteiras de sua própria história, da ‘discriminação inversa’ das maiorias em favor da minorias e do abandono da compreensão tradicional da família e das diferenças tão evidentes entre o papai e a mamãe”.

De sua perspectiva histórica própria, Putin liga essa engenharia social do liberalismo europeu com a experiência do passado russo:

“Tudo isso já ocorreu na Rússia, já passamos por isso. Depois da Revolução de 1917, os bolcheviques, apoiando-se nos dogmas de Marx e Engels, também anunciaram que mudariam toda a vida, não só o político e o econômico, mas até a ideia da moral humana, os fundamentos da existência de uma sociedade sadia. A destruição dos valores seculares atingiu a fé, as relações entre as pessoas, culminando na completa rejeição da família — tal foi o que deu causa e coragem para o denuncismo ideológico entre entes queridos no âmago das famílias assim desagregadas — e tudo isso foi declarado um passo na direção do progresso e […] tinha muito apoio no mundo todo e estava na moda e, hoje, essa moda está de volta. Além disso, obviamente, os bolcheviques também deram mostra de intolerância absoluta ante qualquer opinião que não a deles”.

Lendo essas páginas, nas quais manifesta sua admiração por Alexandre II e Alexandre III, pelo [general Anton Ivanovich] Denikin, como também pelo [general Alexei Alexeievich] Brusílov, duvido que ninguém não possa sentir senão desprezo pela ridícula cantinela do Putin “comunista”. Basta citar a seguinte passagem da Mensagem de 21 de fevereiro de 2022, muito criticada pelos comunistas de verdade:

“Do ponto de vista do destino histórico da Rússia e de seus povos, os princípios leninistas de construção do Estado mostraram ser mais do que apenas um erro, foi coisa pior. Depois do colapso da URSS em 1991, isso ficou muito evidente”.

E, é claro, há material mais que de sobra na coletânea para o estudo das crises na Ucrânia e na Síria. Lendo os discursos e artigos de Putin, o leitor perceberá que os esforços por uma solução negociada com a Ucrânia só foram abandonados pouco antes de começar a Operação Militar Especial.

No discurso comemorativo dos 1.160 anos do Estado russo, Putin deixou muito clara a sua ideia de Rússia e da política necessária para ela:

“Por mais de mil anos a história tem ensinado para a Rússia que relaxar a sua soberania ou renunciar a seus interesses, ainda que por pouco tempo, coloca perigo mortal para ela. Quando isso aconteceu, mesmo que brevemente, a existência da Rússia foi ameaçada.

“Que ninguém espere que venhamos a repetir aqueles erros [dos anos noventas]. Não sucumbiremos ante nenhuma chantagem, não cederemos ante nenhuma intimidação, não deslealdaremos e não perderemos a nossa soberania. Ao contrário, fortalecendo-a, estaremos desenvolvendo o nosso país.

“A soberania é a garantia da liberdade para todos. Segundo as nossas tradições, ninguém estará livre se o seu povo, a sua Pátria, se a Rússia não for livre”.

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