Andrew Joyce resenha Julius Evola O mito do sangue: a gênese do racialismo

A história do meu interesse por Julius Evola é a prova de que nem sempre a primeira impressão é a que fica. Eu devia ter uns 25 anos, quando adquiri o meu primeiro livro do filósofo italiano — um bonito volume de capa dura de Revolta contra o mundo moderno. Eu fiquei pensando em encomendar o livro depois das referências de alguns amigos e outras pessoas de minhas relações, até que, finalmente, decidi comprar o livro depois de assistir ao discurso/palestra de 2010, como sempre excelente, de Jonathan Bowden, sobre Evola, intitulado The world’s Most Right Wing Thinker [O pensador mais direitista do mundo]. Após tantas recomendações, minha expectativa era bem alta e, talvez por isso, ou pelo conteúdo mesmo, no final eu estava decepcionado com o livro. Até então, eu havia feito algumas incursões nos trabalhos de Nietzsche e Heidegger e na filosofia anglo-americana, ou seja, a tradição da filosofia analítica, que parecia bastante atrativa para mim. Por conseguinte, eu desenvolvi um tipo de preconceito contra a filosofia continental (e contra os filósofos continentais), atribuindo-lhe como suas marcas a pose das mais pretensiosas, os argumentos tautológicos ou repetitivos e, entre estes, o aroma de marxismo mais do que suave. Ideologicamente falando, Evola estava a anos-luz de alguns charlatães de sua época, como Jean-Paul Sartre. Durante a leitura de Revolta, entre as suas elucubrações meio místicas, eu percebi que decerto Evola tivesse pensamentos extremamente importantes a oferecer. Daí mesmo decorreu a grande frustração de minha parte, porque o autor, não obstante as coisas de enorme valor que, aparentemente, tinha a dizer, expressou tudo numa linguagem enrolada, sem necessidade disso, e as ideias acabaram perdidas na confusa estrutura textual, infelizmente. Chateado com essa experiência, eu não voltaria a ler Evola nos anos seguintes. E esta foi uma reação de que hoje eu me arrependo.

 

No período que vai da minha leitura de Revolta até a posterior descoberta que fiz de Evola, começou a aumentar a importância atribuída ao italiano no meio hegemônico da academia, graças ao número crescente das traduções e à favorável recepção de sua obra. Os dois trabalhos mais importantes dos últimos anos são, provavelmente, os de Francesco Germinario e Paul Furlong. O primeiro escreveu Razza del Sangue, razza dello Spirito; Julius Evola, l’antisemitismo e il nazionalsocialismo (1930-1943), publicado pela Bollati Borlinghieri em 2001. O segundo escreveu Social and Political Thought of Julius Evola, publicado pela Routledge em 2013. No seu livro, Paul Furlong predicamenta Evola como o maior pensador anti-iluminista. Outro acadêmico, Marcus Hunt, diz de Paul Furlong que nesse seu livro ele “descarta de forma convincente a alegação que faz o acadêmico Roger Griffin [esquerdista e “antifascista”], assumida por muitos outros, de que Evola seria meramente um filósofo do fascismo, sugerindo, ao contrário, que o autor italiano deva ser compreendido ‘no contexto do pensamento conservador europeu desde 1789’”.(1)

 

O pensamento de Evola crescia em proeminência desde a década de 1970, quando se tornou influente, especialmente na Nova Direita francesa. Alguns dos notáveis textos daquela época são os seguintes: Julius Evola, le visionnaire foudroyé (Michel Angebert e Robert de Herte, 1977),  Julius Evola e l’affermazione assoluta (Philippe Baillet, 1978), La Terre de lumière: Le Nord et l’origine (Christophe Levalois, 1985), L’Empire Intérieur (Alain de Benoist, 1995) e Enquête sur la Tradition aujourd’hui (Arnaud Guyot-Jeannin, 1996). Isso, por sua vez, levou a uma crescente (e ainda presente) reação de preocupados acadêmicos esquerdistas, evidenciada, especialmente, nos trabalhos de Thomas Sheehan(2), Elisabetta Cassina Wolff(3), Stéphane François(4) e Franco Ferraresi, autores que descreveram Evola in 1987 como “o mais importante intelectual da Direita Radical na Europa contemporânea”.(5) Aliás, quando foi da vitória de Trump, a histeria midiática concentrou-se por certo tempo na declarada admiração de Steve Bannon pelo filósofo italiano.

 

Até essa altura, eu tinha conhecimento de que a mídia estava em polvorosa, mas não sabia nada de desenvolvimentos mais profundos até que, no ano passado [2017], eu encontrei um livro de Evola, por acaso, num sebo. O título era A Handbook for Right-Wing Youth [Guia para a juventude de direita]. Eu o peguei, dei uma folheada pela simples curiosidade e, então, tive um choque ao perceber o novo Evola dentro dele. Com cerca da metade do tamanho de Revolta, o livro que encontrei tinha um tom mais brando, porém era mais incisivo e direto. Não havia mais misticismo. O texto tratava, exclusivamente, de questões práticas, de ação. Era notavelmente atemporal, também, contendo sabedoria e alento que seriam efetivos e úteis para qualquer militante de nossa causa hoje. Gostei bastante do Handbook, Evola ganhou um lugar permanente na biblioteca da minha casa. Passei, então a estudá-lo, buscando conhecer os trabalhos dele e a recepção que estavam tendo da parte do hegemonismo acadêmico. Foi com grande interesse, nessa altura, que tive conhecimento de que a editora Arktos estava preparando a tradução e publicação de um outro trabalho de Evola — um livro da década de 1930, tratando da questão da raça e do racialismo. Mais intrigante ainda era o título provocativo: O mito do sangue. O livro da Arktos já circula com uma elegante capa alusiva ao estilo decô. Quando eu o abri, entretanto, eu pensava no que se me iria deparar ali. Seria o Evola místico que não me tinha interessado? Ou seria ainda outro lado do eclético pensador?

 

Desde a parte pré-textual, o livro já ganhava muito com o prefácio do tradutor. Em treze páginas muito bem escritas, John Bruce Leonard presta o utilíssimo serviço não só de explicar relevantes questões linguísticas como também de recapitular a história do texto, referindo que o livro fora originalmente publicado duas vezes — a primeira em 1937, a segunda em 1942. A publicação reiterada e as motivações por trás dela justificam o resumo de Leonard na declaração de que O mito do sangue é “em certos aspectos livro muito peculiar na obra evoliana, um que exige explanação especial”. Em O mito do sangue, o que Evola faz é, basicamente, indicar as referências que o seu mais completo parecer sobre a raça deveria considerar. Por isso o texto foi apresentado por Evola como a primeira parte de um estudo do assunto composto de duas partes — consistindo a segunda parte no livro Synthesis of the Doctrine of Race (tradução em preparação pela Arktos). Evola publicou Synthesis depois de 1937 e logo em seguida julgou que deveria republicar O mito do sangue com algumas significativas alterações. Estas mudanças, explica Leonard, resultaram de uma série de fatores, incluindo o fato de as ideias de Evola terem se tornado mais refinadas desde 1937. Ele pretendia, basicamente, revisar alguns dos trabalhos anteriores de acordo com as conclusões mais sólidas que alcançara na altura da publicação de Synthesis.

 

Entretanto, o mais importante, talvez, terá sido a mudança acentuada na ambiência imediata de Evola quanto ao pensamento racial. Um ano depois da primeira publicação de O mito do sangue,  foi aprovado como lei o Manifesto della razza — diploma legal explicitamente decalcado na legislação nacional-socialista, mas depreciado por Evola em O caminho do cinábrio como “trabalho atabalhoado”. Isto não quer dizer que Evola discordasse do princípio da legislação racial.    Na verdade, ele sentia que tais leis eram necessárias na Itália, “devido, principalmente, ao Império Italiano que emergia na África; elas eram convenientes para estabelecer um páthos de distância da parte dos italianos na interação deles com os africanos”. A objeção de Evola dizia respeito ao estilo, ao espírito, ao sentido da legislação racial em alguns relevantes aspectos. Com efeito, O mito do sangue representou a contribuição de Evola para a crítica construtiva do racialismo científico e materialista.

 

O livro divide-se em doze capítulos, abrangendo o que Evola chamou de “genealogia”, em vez de história, do pensamento racialista. Essas seções tratam de muitos tópicos dessa temática: as origens profundas da reflexão racialista, desde os tempos bíblicos até o século XVIII; a obra do conde Gobineau; a ciência racial de finais do século XIX; o trabalho de Houston Stewart Chamberlain; os pareceres do próprio Evola sobre a teoria da hereditariedade e a “tipologia racista”; as crenças contemporâneas concernentes à raça norte-atlântica; a historiografia de influência racial do tipo da produzida por Alfred Rosenberg; a Questão Judaica e o antissemitismo; o racialismo e a lei; as visões de Evola quanto às leis raciais da Alemanha; e, finalmente, a compreensão do próprio autor a respeito do pensamento racial de Adolf Hitler. De um ponto de vista puramente histórico, deve estar claro, agora, que O mito do sangue oferece notável conjunto de juízos sobre alguns dos mais relevantes e controversos assuntos da temática racial, tanto do tempo de Evola quanto do nosso.

 

Evola disserta sobre essas questões interligadas de modo bastante descritivo, objetivo, fazendo que, para alguns leitores, o texto possa parecer obscuro quanto ao sentido exato (ou essencial) em que consiste a sua crítica ao racialismo científico. (Furlong já sugeriu que Evola explica melhor o que as suas ideias não são do que o que elas são.) Minha própria impressão — e estou muito preparado para aceitar outras leituras, se necessárias — é que a crítica de Evola cifra-se a duas postulações principais recorrentes sutilmente ao longo de todo o texto.

Esses reparos podem ser expressos nos dois pontos seguintes:

  1. a) Evola acredita faltar ao pensamento racial em geral uma visão da raça de mais acentuado viés aristocrático, ou seja, ele critica o pressuposto de que ser ariano dependa apenas do nascimento, indicando se tratar também de uma questão de espírito, nobreza, caráter. Ferraresi cita Evola quanto à significação de povo: “Só em referência a uma elite pode-se dizer ‘é de raça’, ‘tem raça’ [no sentido dessa palavra no francês, isto é, ‘boa cepa’]: o povo é só gente, massa.” Em outras palavras, Evola defende um conceito de raça radicalmente anti-igualitário e aristocrático;
  2. b) Evola revela preocupação ou mesmo irritação com o lugar privilegiado concedido ao tipo nórdico em detrimento de outras raças europeias.

Essas críticas colocam as interpretações estritamente biológicas da raça numa condição especial no pensamento de Evola. Olindo de Napoli usa o descritor “racismo espiritual” para designar tal pensamento na Itália dos anos de 1930 e descreve Evola como “o ponto de referência para todos os racistas espirituais”.(6) Segundo a avaliação que Napoli faz de Evola, o trabalho altamente influente (pelo menos na Itália) do filósofo e sua “complexa teoria do racismo não tinham sido purgados de elementos biológicos: estes foram, meramente, subordinados aos componentes voluntarísticos num emaranhado de relações”. Da mesma forma, Wolff caracterizou o pensamento de Evola como,

 

racismo “totalitário” ou “tradicional”, inspirado pelo livro de Ludwig Ferdinand Clauss intitulado Rasse und Seele [Raça e alma]. De acordo com essa doutrina, as raças superiores são constituídas por pessoas dotadas de propriedades biológicas específicas, o que não é estranho ao racismo antropológico, mas essas pessoas possuem, ao mesmo tempo, características “espirituais”: são homens de um forte caráter, capazes do governo de si mesmos e do domínio sobre as próprias paixões, pelo que seguem “naturalmente” os valores da Tradição. Evola pretendeu, com o racismo totalitário, prover as diretrizes para a seleção de uma super-raça que pudesse dominar o mundo: uma combinação das raças aríaco-alemã e romana. O antissemitismo de Evola consistia também nesse mesmo tipo de racismo totalitário. Os judeus não eram estigmatizados enquanto exemplares de uma raça biológica, mas como aqueles identificados a uma mundivisão, a um modo de ser, a um modo de pensar — ou, mais simplesmente, a um espírito — que Evola associava ao que de “pior” e “mais decadente” existe na modernidade: a democracia, o igualitarismo e o materialismo.(7)

 

No primeiro capítulo, “Origens”, Evola diz que o racismo descansa sobre três princípios. O primeiro é que a humanidade é uma ficção abstrata. “A natureza humana é fundamentalmente diferençada.” Entre as raças diferentes prevalece a desigualdade, e a desigualdade é o dado original e a condição normal. O segundo, um princípio mais abstrato, é que cada raça possui um determinado “espírito”, refletido nas características físicas que lhe correspondem e nos métodos que lhe são próprios de construção civilizacional. O terceiro é que para uma raça importa permanecer fiel ao seu espírito e tipo, cumprindo as leis da hereditariedade e a não mistura de sangue papel de importância vital na história da raça. Evola afirma que os corolários desses princípios podem ser identificados em crenças da Antiguidade:

Depara-se-nos, já na Antiguidade, a ideia das diferenças inatas, congênitas e, nalguma medida, até mesmo “fatais”, entre os seres humanos, porque sua origem remonta a estádio pré-humano da evolução humana. Daí, por exemplo, aquela tradição, tradição também romana, pela qual todos aqueles conectados com as influências do Sol seriam dominus natus, ou seja, homens destinados, natural e inevitavelmente, à condição de dominadores.

 

Eu creio que Evola faz analogia mais apropriada ao mencionar os princípios raciais da Bíblia, contidos, especialmente, no Velho Testamento ou Torá. Em seu livro A people that shall dwell alone [Um povo que habitará só], Kevin MacDonald trata desses princípios de forma mais clara e científica, mas Evola está correto ao indicar “certos elementos racistas na teoria da descendência” de antigos textos judaicos. Julgo, também, bastante interessante a discussão de Evola sobre as ideias raciais do imperador Juliano, o Apóstata. Juliano rejeitou a ideia judaica, e depois cristã, de que toda a humanidade seria originária de um só par humano (isto é, Adão e Eva). Em vez disso, e conforme  com o pensamento gentílico, Juliano notou “como são tão diferentes os corpos de germanos e citas em relação aos de líbios e etíopes”, insistindo em que a criação dos diversos povos teria ocorrido separadamente.(8)

 

Passando aos períodos da Idade Média e do Renascimento, Evola faz referência à doutrina dos quatro humores, teorizada por Hipócrates e Galeno, considerando-a antecedente da compreensão biológica da raça, e refere, de passagem, os aditamentos que ela recebeu, posteriormente, de Paracelso, Jean Bodin e Pierre le Charron (este, em 1601, criou uma tipologia étnica). Evola vê a reflexão racial e eugênica, também, na obra de Tommaso Campanella (1589-1639). O autor de A cidade do Sol fazia chacota dos europeus de seu tempo, que “se dedicam com grande zelo ao melhoramento das raças de cachorro, cavalo e galinha, sem se dignarem de fazer o mesmo pela raça dos homens”. Evola revela que, para chegar à sua própria compreensão espiritual da raça, leu os trabalhos de Herder (com o seu conceito de Volksgeist [Espírito do Povo]), Fichte, Franz Bopp, August Friedrich Pott e Jakob Grimm.

 

No segundo capítulo, Evola muda o campo da sua genealogia da reflexão racial, que passa das considerações filosóficas para as categorias biológicas. Embora intitulado “The Doctrine of Count Gobineau” [A doutrina do conde Gobineau], o capítulo explora, contextualiza e conecta os trabalhos de Johann Friedrich Blumenbach, Peter Camper, Anders Retzius, Paul Broca, Fabre D’Olivet, Gustave D’Eichtal e Victor Courtet de L’Isle. Evola atribui à contribuição de Gobineau a descoberta das causas raciais da morte das civilizações. Evola escreve:

A chave para explicar o declínio da civilização é, segundo Gobineau, a degeneração étnica. Um povo degenera “porque ele deixa de ter o mesmo sangue em suas veias, porque a adulteração continuada do seu sangue termina por comprometer a sua qualidade”. Em outras palavras, apesar de a nação manter o nome dado por seus fundadores, esse nome não mais corresponde à mesma raça”.

 

A mim me pareceu interessante a ponderação de Evola a respeito de Gobineau, não apenas pelos conhecimentos e sua síntese, mas também pelo fato bastante óbvio de que Evola não gosta de certas coisas no trabalho do francês. Principalmente, por exemplo, não lhe agrada a discussão de Gobineau sobre a “Roma semítica”, na qual este questiona a infusão de sangue negro no estoque genético da população do Sul da Itália. Evola não explicita nunca o seu desagrado (aliás, compreensível), mas esse é um sentir velado que, certamente, se pode perceber em todo o tratamento mais amplo dado não só a Gobineau como a todos os outros pensadores nórdicos que vieram depois, mais sensíveis à questão da pureza racial. Dada a tacitez da discordância, o texto não se torna uma contestação aberta do tipo “bateu-levou”, mas a tensão discreta que o permeia só eleva, para mim, pessoalmente, a qualidade e o interesse de sua leitura. Na verdade, Evola mostra admiração pela maior parte do trabalho de Gobineau e abre o terceiro capítulo fazendo altos elogios ao francês, em cuja pessoa identifica a “manifestação de um instinto aristocrático”.

Nesse terceiro capítulo, “Desenvolvimentos”, Evola lida com o pensamento posterior a Gobineau, ocupando-se, máxime, com outro francês, o conde Georges Vacher de Lapouge. Ele atribui a Lapouge o crédito (se este for o termo correto) de haver dividido a raça branca, indo-europeia ou ariana em categorias como “o homem alpino”, “os homens oeste-atlânticos” etc. Em Lapouge, ele vê a origem da ideia do ariano nórdico como um loiro dolicocéfalo. Eram tantas as preocupações de Lapouge quanto a ângulos faciais e proporções cranianas, que ele profetizou: “Eu estou convencido de que, no próximo século, milhões de homens estarão nos campos de batalha pela diferença de um ou dois graus no índice cefálico”. Evola cita Lapouge desapaixonadamente, mas o leitor fica com a forte impressão de que ele aponta no francês um dos mais claros e piores exemplos de racialismo materialista. Mais ambivalente é seu tratamento de outros antropólogos, como Ludwig Wilser, Friedrich Lange, Ludwig Woltmann e Heinrich Driesmans.

No quarto capítulo, é considerada a obra do nordicista pangermânico Houston Stewart Chamberlain. Evola é implacável nas críticas a Chamberlain, notando quanto ao livro Foundations of the Nineteenth Century [Os fundamentos do século XIX] que “O leitor fica meio perturbado com a falta de sistematicidade de Chamberlain, que divaga entre um assunto e outro, movimento que costuma ser a marca bem marcante do diletante”. E, novamente, se percebe o desagrado de Evola, desta vez diante do desprezo de Chamberlain para com os latinos, excluídos do conjunto das raças superiores, reservado apenas aos celtas, teutões e eslavos. Até mesmo a discussão de Chamberlain sobre a espiritualidade contém, segundo Evola, “violento sentimento anticatólico e antirromano”. Como se não bastasse, Chamberlain também emprega a palavra “latinização” para significar a “fusão caótica de povos”, irritando ainda mais o conde italiano que, desta vez, perde a paciência: “O racismo de Chamberlain apela aos mais banais e simplórios lugares-comuns encontradiços na interpretação não tradicional da história e no iluminismo liberaloide e profano”. Na conclusão do capítulo, Evola reserva dizeres mais amenos e nuançados para o maior discípulo de Chamberlain: Joseph Ludwig Reimer.

 

Os capítulos quinto e sexto abordam a teoria da hereditariedade e a tipologia das raças. No segundo destes tópicos, Evola fala quase exclusivamente da obra de Hans F. K. Günther, especialmente de sua taxionomia antropológica. A discussão, tão refletida e densa, não pode ser resumida sem injustiçar o conde. Basta dizer que Evola parece apreciar a classificação de Günther por não ter considerado apenas as diferenças físicas entre as raças, mas também aspectos psíquicos, psicológicos e outros quase espirituais.

No sétimo capítulo, “O mito do Ártico”, Evola passa em revista as teorias que tratam da origem polar da raça branca. Mais uma vez, de forma sutil, transparece a pouca paciência de Evola ao lidar com essa linha de pensamento. Ele vê, na hipótese do Ártico, o mesmo persistente e desarrazoado nordicismo já visto alhures.

No oitavo capítulo, “A concepção racista da história”, O mito do sangue volta-se para temas mais contemporâneos (principalmente o pensamento nacional-socialista) pelo restante do texto. Esta última quarta parte do livro é extremamente interessante. Em “A concepção racista da história”, Evola examina o estudo de Alfred Rosenberg. Fica evidente, desde o começo, a forte antipatia de Evola em relação a Rosenberg. Aliás, o próprio título do livro pode ser visto como uma resposta a O mito do século XX, título do livro de Rosenberg. O primeiro erro de Rosenberg é “ter extraído o seu princípio mais importante das teorias de Chamberlain”, e o seu segundo erro é exibir “uma ainda mais forte coloração anticatólica”. A não ser por esses pontos, Evola dá à história racial de Rosenberg o devido reconhecimento, apenas lamentando a sua “incompreensão dos valores estéticos e a depreciação deles ante os valores marciais”. A crítica seguinte de Evola, que a esta altura deve nos parecer familiar, recai sobre a discussão que faz Rosenberg sobre os povos do Mediterrâneo, especialmente os antigos etruscos. De acordo com Rosenberg, os etruscos eram um “povo misterioso e forâneo (levantino), cuja sombria e subversiva influência nunca se obliterou, realmente, apesar das incursões nórdicas”. Assim, pois, Rosenberg reconhece, na descrição do Inferno que faz Dante em A Divina Comédia, um exemplo das “medonhas representações do além-túmulo típicas dos etruscos […], de seus ritualismos supersticiosos, seu satanismo obsceno de tipo levantino”. Como amante da obra dantiana, especialmente de A divina comédia e da majestosamente cavalheiresca A vida nova, acabei concordando, mais ou menos, com o retrato que Evola faz de Rosenberg como profundamente ignorante de questões culturais que requeiram maior sensibilidade.

 

Dito isso, parece difícil evitar a sensação de que O mito do sangue arrisca-se a se confundir com uma apologia racial e filosófica dos não nórdicos. O que salva o texto, continuamente, de acusações nesse sentido é a persistente atitude de Evola com relação ao elitismo e a recorrência deste tema por todo o livro. A principal e, de certa perspectiva, a mais devastadora crítica de Evola contra Rosenberg e outros nacional-socialistas como ele é que a sua ideologia mantém forte sentido igualitário. Evola escreve:

 

A tradição do homem da raça norte-teutônica, de acordo com esses estudiosos, não teve continuação em Carlos Magno, mas sim na linhagem dos saxões pagãos erradicados por esse imperador e, depois, nos Príncipes da Reforma, insurgidos contra a autoridade imperial. Von Leers identifica na revolta antiaristocrática e comunitarista dos camponeses alemães “a última revolução nórdica do Medievo”, sufocada em sangue. E Rosenberg, da mesma forma, identifica nesse evento uma insurreição contra a servidão romana na tríplice forma dada pela Igreja, pelo Estado e pelo Direito, antevendo que essa revolta espiritual voltará a se acender no século XX para a vitória final. Ainda mais fortemente, essas ideias são defendidas por Walter Darré, cujo último trabalho sobre O campesinato como fonte de vida da raça nórdica obteve larga difusão e sucesso na Alemanha, o que gostaríamos da atribuir a causas extrínsecas… O tipo nórdico verdadeiro não é aquele do conquistador, mas aquele do camponês: um camponês armado (pasmem!), pronto para a autodefesa, mas ainda um camponês.

 

Evola fica abismado com o que diz um tratadista como Carl Dryssen, entre outros, para quem era necessário “reconhecer a tradição do socialismo agrícola como tradição teutônica, e daí reconhecer que a Alemanha está basicamente ligada ao Oriente, ao elemento eslavo-bolchevique, ao bolchevismo — um regime também nascido dos agricultores-soldados livres — e deve fazer causa comum contra o ‘Oeste’”. Francesco Germinario resume essas críticas de Evola como,

atacando o caráter grosseiro e plebeu do ‘racismo de sangue’ do nazismo. O nazismo, ele acreditava, definia a raça ariana muito amplamente e, ao mesmo tempo, muito estreitamente: fazendo a raça coextensiva a todo o Volk germânico, os nazistas ofereciam o nobre título de Ariano a qualquer zé-pregueté da comunidade nacional. Disso também decorreu o erro de situar a legitimidade no seio das massas e não nas mãos de seus chefes. Um retorno radical à tradição iria, ao contrário, requerer de fascistas e nazistas o completo abandono do nacionalismo populista em favor de um “imperialismo pagão”. Por outro lado, ao preconizar que os povos nórdicos do Noroeste da Europa eram os únicos arianos, os alemães excluíram, tolamente, outras elites raciais da Europa, com o que demonstraram a inadequação da ideologia nazista para servir de base para a Nova Ordem ou para um ressurrecto Sagrado Império Romano.(9)

 

Essas mesmas críticas reaparecem no décimo capítulo (“A concepção racista do direito”), no décimo primeiro capítulo (“A nova legislação racista”) e no décimo segundo capítulo (“O racismo de Adolf Hitler”). O conteúdo desses capítulos é interessante e merece atenta leitura, mas seu tratamento exaustivo ocuparia muito espaço. Além disso, dado o caráter central e subordinante de tais críticas, qualquer síntese delas arriscaria tornar repetitiva esta resenha de maneira tal que faria deste texto uma injustiça. Pelo restante da resenha eu irei, em razão disso, focar num capítulo do livro que deve ser, ao mesmo tempo, o mais interessante e o mais fora de lugar. Refiro-me ao nono capítulo de Evola — “Racismo e antissemitismo”.

 

Esse capítulo é o mais fora de lugar, porque Evola evita de apresentar um ponto de vista que ele depois critica ou questiona. Em vez disso, e imediatamente, ele coloca a Questão Judaica fora do pensamento racial normal e, então, destaca as especificidades dessa mesma questão que exigem  tal colocação. Evola tinha muita familiaridade com a Questão Judaica. Antes de escrever O mito do sangue, ele editara na Itália Os protocolos dos sábios de Sião. No capítulo “Racismo e antissemitismo”, ele argumenta contra a ideia de que os judeus constituam raça pura semelhante a um Ur-Volk, assegurando que, ao contrário, eles são “povo de origem híbrida” que se tornou biologicamente distinto. Ele admite que a mistura das raças remonta a tempos muito remotos, mas afirma que o povo que vemos hoje foi forjado pelo judaísmo em quamanha medida que acabou desenvolvendo “instintos e atitudes de um tipo especial, os quais se tornaram hereditários na passagem dos séculos”. Ele cita o judeu James Darmesteter como tendo escrito que “os judeus têm sido modelados, para não dizer inventados, pelos seus livros e seus ritos. Assim como Adão foi plasmado nas mãos de Jeová, assim ele [o judeu] foi plasmado nas mãos dos rabinos”. Essas referências, claro, condizem muito bem com a exposição de Kevin MacDonald sobre a função quase biológica do judaísmo em seu A People That Shall Dwell Alone [Um povo que habitará só].

 

De acordo com Evola, o judaísmo não tomou a forma atual no tempo de Cristo, mas sim em período posterior — na época do Talmude. Foi durante esta época que “formulações da Lei judaica reforçaram ainda mais e distinguiram o modo de ser judeu e seu instinto, sobretudo no que respeita à sua relação com os não judeus”. Evola concorda com René Guénon quanto a serem os  judeus que abandonaram a Lei judaica ainda mais perigosos do que os seguidores dela, pois “aquele que não tem raça se volta contra as raças; aquele que não tem nação se volta contra as nações”. Ele também aprova a visão de Heinrich Wolf, que vê o elemento judeu como,

estranho, furtivo, um apátrida em cada pátria… o próprio princípio antirracial, antitradicional, anticultural: não a antítese de determinada cultura, mas de toda cultura, se racial ou nacionalmente determinada… com o espírito dos nômades, dos povos desertícolas sem ligação com nenhuma pátria, os judeus infundiram em vários povos — a começar do romano — o vírus da desnaturalização ou universalismo, do internacionalismo da cultura. Sua ação consiste na corrosão incessante do que quer que seja diferenciado, qualitativo, ligado ao sangue e à tradição.

 

A discussão de Evola sobre a noção dos judeus de que agem como “a luz das nações” é excepcional e de valor inestimável, dizendo respeito ao que Evola refere como o autoconceito judeu de ser o “homem da salvação”. Ela merece ser lida e assimilada completamente, mas basta  dizer aqui que a ação do “homem da salvação” redunda na “contaminação e degradação de todo valor mais alto”. Similarmente, Evola vê, na crença dos judeus como sendo o “Povo Eleito” predestinado à dominação de outros povos, a manifestação de “um profundo e desenfreado ódio a todo não judeu”, que se efetiva num círculo vicioso [de profecia autorrealizável]”. A seguir, Evola cita passagens antigentílicas do Talmude que confirmam as suas preocupações.

Evola insiste em que, desses problemas, embora radicados profundamente na história e nos primeiros escritos do Talmude, nenhum está hoje resolvido: “Aqueles preceitos afetaram, durante séculos, a formação do judeu no âmago do seu caráter: eles deixaram marcas indeléveis”. Evola apresenta o que, na verdade, pode ser uma primitiva versão, datada da década de 1930, da teoria  da estratégia evolucionária de grupo, que depois consagraria Kevin MacDonald. Em vez de falar, estritamente, de genes e traços, Evola menciona um “complexo de instintos” que apenas foi laicizado e se tornou funcional na modernidade. Ele argumenta que esses instintos são, basicamente, revolucionários, “podendo atuar por si mesmos, sem nenhuma dada condição externa, como o fermento de agitação e subversão permanentes”. Evola argumenta contra algumas cogitações antijudaicas do seu tempo envolvendo certas teorias conspiratórias. Em vez disso, ele aventa o parecer de que, dadas as reiteradas situações de persistente participação judaica em atividades subversivas, “não estamos lidando com nenhuma intenção particular ou plano, mas com instintos, com um modo de ser que se manifesta natural e espontaneamente”. “Misturam-se o instinto e a inspiração em convergência. Não se pode dizer que os judeus sejam culpados: os judeus não podem agir senão assim, como o ácido não pode senão corroer. É o ser deles, determinação atávica das suso citadas causas raciais”. O mesmo é dizer “estratégia evolucionária de grupo”, expressão de Kevin MacDonald, parafrasticamente.

Esse nono capítulo termina com uma discussão sobre Os protocolos, mas toda a sua segunda metade, antes disso, está repleta de percepções e comentários dignos de referência. Uma citação de Theodor Fritsch clama por ser incluída aqui: “A comunidade judia tem menos características de  religião do que de conspiração”. Evola entrega até mesmo uma espécie de versão primitiva em ponto menor da Culture of critique (trilogia de Kevin MacDonald), ao esclarecer o sentido maior e subjacente nos trabalhos de Freud, Adler, Claudio Lombroso (criminologista judeu), Nordau, Wasserman, Hirschfeld e Durkheim, observando que,

 

esses são exemplos frisantes, que poderiam ser multiplicados, de ações com mil faces, mas com um só efeito: desintegrar, degradar, subverter. Isso se chama Schadenfreude [chadenfroide ou maletícia em português (n. do trad.)] ou seja, a alegria obtida da desmoralização, da espoliação, da sensualização, da libertinagem, da abertura das portas dos repartimentos “subterrâneos” da alma humana, desliando os seus laços para saciá-la — eis o atributo da Schadenfreude que marca a alma judeo-levantina, a alma do “homem da salvação”.

 

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O mito do sangue é um livro notável sob muitos aspectos — como documento histórico; como contrapeso do moderno e científico pensamento racialista; como exemplo de um radical pensamento anti-igualitarista; como contribuição para discussão da Questão Judaica; como resposta influente e importante dada às visões nordicistas mais rígidas da civilização europeia (do passado, do presente e do futuro); e mesmo como relevante desenvolvimento na obra de Evola. Eu posso dizer com alguma certeza que ninguém concordará com tudo o que Evola tem a dizer no texto, mas eu posso afirmar, por outro lado e da mesma forma, que ninguém precisará se esforçar muito para encontrar nele grandes valores. O livro desafia e provoca, escarnece e cativa, norteia e edifica. Eu fiquei meio frustrado com o conde Evola, que também me deixou perplexo, mas com ele eu aprendi profundas lições. Agora, como no distante 1936, ele não admite ser ignorado.

 

(1) HUNT, Marcus. Review: social and political thought of Julius Evola by Paul Furlong. Political Studies Review, v. 13, p. 239-316, 247. 2015.

(2) SHEEHAN. Thomas. Myth and violence: the fascism of Julius Evola and Alain de Benoist.  Social Research, v. 48, n. 1, p. 45-73. 1981.

(3) WOLFF, Elisabetta Cassina. Apolitìa and tradition in Julius Evola as reaction to nihilism. European Review, v. 22, n. 2, 2014), 258- 273; maio, 2014. Cf. também “Evola’s interpretation of fascism and moral responsibility,” Patterns of Prejudice, 50:4-5, 478-494.

(4) FRANÇOIS, Stéphane. The nouvelle droite and “Tradition”. Journal for the Study of Radicalism, v. 8, n. 1, p. 87-106, 2014. .

(5) FERRARESI, Franco. Julius Evola: tradition, reaction, and the Radical Right. European Journal of Sociology, v. 28, n. 1, p. 107-151, 1987.

(6) NAPOLI, Olindo de. The origin of the racist laws under fascism; a problem of historiography.  Journal of Modern Italian Studies, v. 17, n. 1, p. 106-122, 2012.

(7) WOLFF, Elisabeta Cassina. Evola’s interpretation of fascism and moral responsibility. Patterns of Prejudice. p. 483.

(8) Embora Evola não a tenha mencionado, eu fui levado a me lembrar da passagem dos Edas em que um deus nórdico (para alguns estudiosos era Ódin, para outros, Heimdall) vem ao mundo e procria, gerando três tipos humanos imutavelmente diversos em aparência, espírito e capacidade.

(9) MARTIN, Benjamin. Review: Francesco Germinario: Razza del sangue, razza dello spirito; Julius Evola, l’antisemitismo e il nazionalsocialismo (193043), Modern Italy, v. 9, n.1, p. 124-125, 2004.

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Fonte: The Occidental Observer. Autor: Andrew Joyce. Título Original: Review: Julius Evola’s “The Myth of the Blood: The Genesis of Racialism”. Data de publicação: 18 de setembro de 2018. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.