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Putin segundo ele mesmo

Putin, “comunista”?
Parem com isso, por favor!
E leiam os discursos dele!

Fonte: El Manifiesto. Autor: Sertório. Título original: Putin, el verbo y la idea. Data de publicação: 6 de maio de 2023. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.

A editora Ediciones Fides acaba de publicar Putin: escritos y discursos, uma interessante seleção dos textos mais importantes do presidente russo, com datação de fevereiro de 2000 até dezembro de 2022, ou seja, praticamente todo o período de governo do dirigente do Kremlin. O livro traz como introdução estudo de Juan António Aguilar — um dos nossos melhores especialistas em Rússia e fundador do Instituto Espanhol de Geopolítica — que merece ser lido, sobretudo pelo profundo conhecimento do autor sobre a política russa, país que visitou muitas vezes e com o qual mantém intenso contato. Nas suas páginas está retratado o Putin real, bastante diferente da imagem do homem canceroso, doido e fanático como o pintam os midiadores do estabilismo ocidental para o próprio deleite.

Não obstante, é diretamente do que fala e faz o presidente russo que podemos extrair as mais significativas conclusões sobre a sua personalidade e a sua política. Em fevereiro de 2000, logo depois de sua ascensão ao poder, escreveu uma Carta aberta aos seus eleitores que era uma antecipação da sua forma de atuar: “Continuar na evasiva é muito mais perigoso do que aceitar o desafio”. A Carta continha uma mensagem muitas vezes reiterada durante as últimas duas décadas, dizendo que só um Estado forte podia livrar a Rússia do desmantelamento a que está submetida pelos experimentos liberais de Yeltsin e seus oligarcas. Daí o seu apelo à cidadania:

“Provavelmente, cada um de vocês tenha a sua própria ideia quanto ao que possa estar na raiz dos nossos reveses e erros de cálculo. Porém, já é hora de os cidadãos da Rússia entrarmos em acordo sobre o que esperar do Estado e como apoiá-lo. Agora estou falando de nossas prioridades nacionais. Sem isto, voltaremos a perder tempo em vão, e os demagogos irresponsáveis decidirão nosso destino”.

A restauração do Estado russo e a defesa de seus interesses contra as imposições externas é o norte da política de Putin. Também marca o terreno ante a intromissão do Ocidente na área de influência de Moscou:

“A Rússia já não é o mapa truncado da União Soviética […]. Um grande país aprecia sua liberdade e respeita a dos demais. Não é razoável ter medo de uma Rússia forte, mas o inimigo que nos provoca deve saber que brinca com fogo”.

A respeito das relações da Rússia com a União mal denominada “Europeia”, triste é ler este texto de 2006:

“A Rússia, tanto em seu espírito quanto nas suas tradições históricas, é parte da ‘família europeia’. Não buscamos ingressar na União Europeia. Não obstante, considerando a questão de uma perspectiva de mais longo prazo, não vejo áreas adversas a uma associação estratégica equitativa, a uma associação baseada em aspirações e valores comuns”.

Naquela altura, Putin ainda acreditava numa confluência de interesses mutuamente benéfica entre a Rússia e a União mal denominada “Europeia”. Tratar-se-ia de um pacto entre iguais que livraria a Rússia de condição subalterna na relação com os prepotentes anglo-saxões. Atualmente, daquela aproximação só restam as cinzas. E do sonho de um espaço eurasiático integrado do arquipélago dos Açores a Vladivostoque, o que se dirá, então?

Convertida no quintal do império ianque, Europa é agora só o nome de um defunto.

Em outro discurso, este de 30 de setembro de 2022, quando foi da admissão das repúblicas de Lugansque, Donétisque, Zaporíjia e Quérson na Federação Russa, Putin enfatizou que as elites dos Estados Unidos estavam empenhadas não só em abater a Rússia, mas também em “destruir os Estados nacionais”. Ele continuou: “Isto se aplica à Europa, isto ameaça a identidade da França, da Itália, da Espanha, isto é um ataque a outros países de longa tradição histórica”.

E, ainda nessa mesma mensagem, acrescentou:

Washington exige cada vez mais sanções contra a Rússia, e a maioria dos obedientes políticos europeus está de acordo com a agressão. Eles sabem, claramente, que os Estados Unidos, levando a UE a não comprar energia e outros recursos de fornecedores russos, causam a desindustrialização da Europa […]. As elites europeias têm plena consciência do que se passa, mas preferem servir a interesses inconfessáveis de estranhos. Mais do que subserviência, existe aí uma ação direta de traição contra os seus povos”.

A opinião de Putin sobre o Ocidente mudou radicalmente nos últimos anos, e não só por considerações de natureza estratégica.“Observamos com surpresa os processos tendo lugar em países que por séculos gozavam do autoconceito que os colocava na vanguarda do progresso. Evidentemente, entretanto, os transtornos socioculturais nos Estados Unidos e na Europa Ocidental não são assunto nosso, nós não nos imiscuímos nisso aí”. Apesar da ressalva, o presidente russo não deixou de manifestar o seu espanto diante da insistência com que os ocidentais se entregam à teoria e à prática insanas do “cancelamento agressivo de páginas inteiras de sua própria história, da ‘discriminação inversa’ das maiorias em favor da minorias e do abandono da compreensão tradicional da família e das diferenças tão evidentes entre o papai e a mamãe”.

De sua perspectiva histórica própria, Putin liga essa engenharia social do liberalismo europeu com a experiência do passado russo:

“Tudo isso já ocorreu na Rússia, já passamos por isso. Depois da Revolução de 1917, os bolcheviques, apoiando-se nos dogmas de Marx e Engels, também anunciaram que mudariam toda a vida, não só o político e o econômico, mas até a ideia da moral humana, os fundamentos da existência de uma sociedade sadia. A destruição dos valores seculares atingiu a fé, as relações entre as pessoas, culminando na completa rejeição da família — tal foi o que deu causa e coragem para o denuncismo ideológico entre entes queridos no âmago das famílias assim desagregadas — e tudo isso foi declarado um passo na direção do progresso e […] tinha muito apoio no mundo todo e estava na moda e, hoje, essa moda está de volta. Além disso, obviamente, os bolcheviques também deram mostra de intolerância absoluta ante qualquer opinião que não a deles”.

Lendo essas páginas, nas quais manifesta sua admiração por Alexandre II e Alexandre III, pelo [general Anton Ivanovich] Denikin, como também pelo [general Alexei Alexeievich] Brusílov, duvido que ninguém não possa sentir senão desprezo pela ridícula cantinela do Putin “comunista”. Basta citar a seguinte passagem da Mensagem de 21 de fevereiro de 2022, muito criticada pelos comunistas de verdade:

“Do ponto de vista do destino histórico da Rússia e de seus povos, os princípios leninistas de construção do Estado mostraram ser mais do que apenas um erro, foi coisa pior. Depois do colapso da URSS em 1991, isso ficou muito evidente”.

E, é claro, há material mais que de sobra na coletânea para o estudo das crises na Ucrânia e na Síria. Lendo os discursos e artigos de Putin, o leitor perceberá que os esforços por uma solução negociada com a Ucrânia só foram abandonados pouco antes de começar a Operação Militar Especial.

No discurso comemorativo dos 1.160 anos do Estado russo, Putin deixou muito clara a sua ideia de Rússia e da política necessária para ela:

“Por mais de mil anos a história tem ensinado para a Rússia que relaxar a sua soberania ou renunciar a seus interesses, ainda que por pouco tempo, coloca perigo mortal para ela. Quando isso aconteceu, mesmo que brevemente, a existência da Rússia foi ameaçada.

“Que ninguém espere que venhamos a repetir aqueles erros [dos anos noventas]. Não sucumbiremos ante nenhuma chantagem, não cederemos ante nenhuma intimidação, não deslealdaremos e não perderemos a nossa soberania. Ao contrário, fortalecendo-a, estaremos desenvolvendo o nosso país.

“A soberania é a garantia da liberdade para todos. Segundo as nossas tradições, ninguém estará livre se o seu povo, a sua Pátria, se a Rússia não for livre”.

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Davis Carlton: O racismo de Deus

O etnonacionalismo consiste num sistema de crenças que afirma a compreensão cristã tradicional das famílias, tribos e nações. O etnonacionalismo sustenta que as nações têm as suas raízes na comum herança genética pela qual se definem, e que os alicerces de uma nação descansam sobre a ancestralidade, a língua, a cultura, a religião e os costumes sociais compartidos.

Quais são os principais fatores responsáveis pela coesão de uma nação? A unidade nacional dependeria mais da comunidade dos genes ou da comunidade das ideias? Na verdade, a palavra “Etnonacionalismo” é redundante. Sabe-se que na língua inglesa a palavra “Nação” tem sido tradicionalmente definida pelo nascimento, não meramente pela geografia ou pelas fronteiras políticas. A palavra “Nação” no inglês tem a ver com natal, ou seja, com o nascimento, como quando se diz, por exemplo, “o setor neonatal de um hospital”. No Natal nós celebramos o nascimento de Cristo. Uma pessoa é nativa da terra do seu nascimento. Então, nesse caso, por que fazer uso dessa palavra redundante que é “Etnonacionalismo”? Por que os defensores do etnonacionalismo não empregamos a palavra mais simples, “Nacionalismo”, para significar “Etnonacionalismo”? Acontece que na história recente tem vindo a prevalecer o conceito de “nação proposicional”. Desta perspectiva, a nação assimila-se a um conjunto de pessoas unidas por uma ideologia comum, por princípios propostos e aceitos, por alguma proposição (daí o nome), ou seja, uma afirmação de diretriz política que sirva de base para a nação, que nesse caso não teria berço na comum ancestralidade. Entretanto, como veremos, a nação proposicional implica erro lógico, trata-se de uma contradição em termos.

As perguntas a que nós, cristãos ortodoxos, devemos responder são estas: com que sentido o vocábulo “Nação” é empregado na Bíblia? Que tipo de nação a Bíblia preconiza? A Bíblia endossa uma definição mais tradicional de nação? Ou a Bíblia promove a ideia de nação proposicional, com a fé cristã sendo a proposição? O meu objetivo é demonstrar que, na verdade, a Bíblia prega o conceito tradicional de nação como agregado de pessoas que compartem uma linhagem comum.

O significado e o uso da palavra “Nação” na Bíblia

A Bíblia foi predominantemente escrita em hebraico e grego. A palavra usada no Novo Testamento em grego e no Velho Testamento da septuaginta é éthnos. Esta palavra é o étimo da nossa palavra inglesa ethnicity e denota os homens de uma linhagem comum. Esta definição é também consistente com o modo como a palavra “Nação” é empregada na Bíblia. Nas Escrituras Sagradas, o conceito de nação está definido exatamente como na sexta edição do Black’s law dictionary: um povo ou agregado de homens organizado em sociedade na forma da lei, geralmente habitando determinado território, de língua, costumes e história comuns, distinto de outros pela origem e características raciais, que geralmente, mas não necessariamente, vive sob um mesmo governo e soberania.

As nações são mencionadas, primeiramente, na Tabela das Nações, constante no capítulo 10 do Gênesis. A Tabela das Nações relaciona a descendência de Noé depois do Dilúvio. Estas nações são listadas segundo a hereditariedade, enquanto ramos de uma árvore que tem Noé como o seu tronco. Tais nações são enumeradas como extensões de famílias (Gênesis 10:5, 20, 31s) e esse uso da palavra “Nação” mantém-se coerente por toda a Bíblia.

Passadas algumas gerações depois do Dilúvio, um homem chamado Ninrode tentou construir um império. Seu reino foi chamado de Babel, e ele uniu diferentes grupos sob sua chefia carismática. Os grupos governados por Ninrode empenharam-se na construção de uma cidade e de uma torre como monumento alusivo ao seu compromisso com a unidade política. Deus tomou conhecimento do empreendimento e proclamou que a sua continuação causaria desmedido mal (Gênesis 11:6). Deus, então, decidiu fazer que a língua dos construtores de Babel se diferenciasse para assim impedir a união deles num mesmo corpo político. Esta é uma passagem forte e demonstra que as divisões e fronteiras nacionais estão de harmonia com a ordem dada por Deus.

 

Alguns argumentam que a separação das nações terá sido a solução transitória para um problema havido séculos antes e que Cristo teria religado as partes separadas. Essas pessoas, geralmente, veem os limes ou divisões nacionais como um problema que cedo ou tarde será resolvido. Os etnonacionalistas discordam fortemente dessa visão da teleologia ou propósito da raça e das distinções raciais. Os etnonacionalistas afirmam que Deus quis criar raças, tribos, nações e famílias separadas desde o começo e que todos estarão unidos sob Cristo, finalmente. Em razão de as distinções raciais existirem no Céu, fica claro que Deus desejou que existissem para a sua própria glória. Nada na Bíblia indica que a distinção racial ou a identidade racial tenha sido a solução transitória de um problema temporário. Tais distinções, ao contrário, são elemento integral de nossa identidade e persistirão para sempre (Apocalipse: 5:9; 7:9; 21:24; 22:2.) Uma vez que tenhamos estabelecido que nacionalidades separadas existem no Céu e que muitas “nações entre elas foram salvas”, torna-se evidente que a raça possui importância intrínseca. Não estamos mais impedidos de dizer que os nossos corpos ressurrectos não terão diferenças de raça do que de dizer que eles não terão diferenças de sexo.

Orgulho racial, lealdade e responsabilidade

Muitos cristãos brancos pensam que o orgulho racial seja alguma coisa intrinsecamente errada ou maligna. Eles acham que só podemos nos ufanar da condição de seguidores de Cristo. Num certo sentido, isso é verdade. O apóstolo Paulo considerava que qualquer bem ou honra que ele pudesse desejar não passaria de “merda” em comparação com a “excelsitude do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor” (Filipenses 3:4-8), sua origem étnica, inclusive! Importa muito notar que Paulo usa aí uma linguagem hiperbólica. O apóstolo está dizendo que todo o nosso ser e o nosso ter não vale nada diante da santidade de Jesus Cristo! Importa ressaltar também que Paulo está, nessa passagem, comparando a própria santidade com a santidade de Cristo. Nesse sentido é que nada em nós importa para a salvação. Somos salvos apenas por mérito de Cristo. O próprio Cristo quer que nossa lealdade a Ele prevaleça sobre nossa lealdade a nossos cônjuges e demais familiares (Mateus 19:29; Marcus 10:30)! Seria grave erro, entretanto, concluir daí que a ancestralidade ou o próprio casamento não tem importância.

Com efeito, o próprio apóstolo Paulo, que dirigiu essas palavras aos filipenses, também disse que ele “desejaria ser amaldiçoado e separado de Cristo por amor de meus irmãos, os de minha raça, o povo de Israel” (Romanos 9:3). Na nova edição internacional da Bíblia, a referência explícita à “raça” foi substituída pela expressão “irmãos segundo a carne”. Existe aí uma clara e desinibida manifestação de orgulho e lealdade raciais. Sem nenhuma ambiguidade, Paulo mostra solidariedade para com o seu povo, mesmo em se tratando de gente infiel! O devotamento de Paulo ao seu trabalho missionário pelos não israelitas não o impediu de assumir seu natural afeto pelo seu próprio povo. Se para Paulo foi lícito expressar o seu compromisso com o bem-estar da sua própria gente, por que a mesma manifestação de solidariedade racial não se permite aos brancos? Os brancos que demonstram solidariedade entre si são, geralmente, discriminados, mesmo quando não há da parte deles nenhuma animosidade contra pessoas de outras raças. Esse sentimento de afinidade, simpatia ou amor ligando alguém ao povo de sua pertença não se deve limitar a foro íntimo, ao âmbito pessoal das preocupações e afetos motivados por anseios de solidariedade endoétnica, devendo, ao contrário, ganhar expressão pública na prática das ações e na assunção de responsabilidades políticas.

Atualmente, entretanto, são muitos os que não acreditam nem sequer nas responsabilidades ou obrigações familiares. Isto não deve ser assim! O apóstolo Paulo disse a seu discípulo Timóteo que “Quem se descuida dos seus, e principalmente dos de sua família, é um renegado, pior do que um infiel” (1 Timóteo 5:8). O substantivo “seus”, certamente, não pode ser interpretado como significando o que, hoje, denotaríamos pela palavra “Raça”. “Seus”, em vez disso, significa ali a família extensa, cujo centro está no domicílio, na família nuclear. Paulo está ensinando que as pessoas têm obrigações familiares que se expandem em círculos concêntricos de lealdade. Nossas responsabilidades para com a humanidade em geral são muito menores do que as responsabilidades que temos para com aqueles no nosso lar ou socialmente próximo dele. Isto demonstra, novamente, a importância da família, do clã, da tribo, da nação e da raça no modelo societal bíblico.

O propósito das distinções nacionais

O propósito de Deus atribuído às diferentes nações será tratado mais detalhadamente em outros artigos. Aqui veremos bem por cima, e rapidamente, a questão do propósito a que serve cada nação. A primeira observação que devemos considerar é que a distinção nacional de base hereditária já existia quando Babel estava em construção. Temos certa referência cronológica na Tabela das Nações: a divisão de Babel teve lugar ainda ao tempo de Pelegue (Gênesis 10:25). Pelegue é da quarta geração de Sem e da quinta geração de Noé. Podemos concluir, então, que a identidade nacional já tinha raízes nos filhos de Noé e na sua descendência, e que a divisão de Babel não era disposição nova ou inovadora mas, antes, a reafirmação de uma preexistente estrutura social que volve atrás no passado até, pelo menos, o tempo do Dilúvio. Deus confundiu as línguas como expediente adicional para a manutenção das distinções nacionais. As nações não foram criadas aí, elas já existiam antes disso! Muitas gerações das nações listadas no capítulo 10 do Gênese tinham-se passado antes da construção da Torre de Babel, e Deus estava protegendo a identidade singular de cada nação anterior a Babel. Certamente, Babel foi castigo para a expiação de pecados, mas também foi ato piedoso de Deus para atalhar a marcha do mal nas sociedades cosmopolitas esquecidas de sua identidade tribal. As sociedades sem consciência racial ou tribal caem em decadência devido ao anonimato e à perda da autoridade patriarcal, corolário inevitável desse tipo de regime. Quando os ancestrais são esquecidos, aqueles que se esquecem deles também se esquecerão dos próprios descendentes.

 

Em Deuteronômio 32:8, lemos que as nações foram apartadas por ato especial da providência de Deus. Ali está escrito que o Altíssimo dividiu as nações, a sua herança para elas e separou os filhos de Adão e, ainda, que Deus estabeleceu os limes das nações. A divisão da herança de Deus entre as várias nações é positivo e intencional trabalho da providência de Deus. Isso significa que a separação das nações não apenas teve a aprovação de Deus, mas também que Ele o fez a bem da própria criatura humana.

Outra passagem fundamental sobre os propósitos das distinções nacionais e sua conveniência encontra-se em Atos 17:26s. Neste trecho, lemos que Deus fez de um só sangue (presumível referência, de novo, a Adão) todas as nações: “E de um só sangue fez toda a geração dos homens, para habitar sobre toda a face da terra, determinando os tempos já dantes ordenados, e os limites da sua habitação; para que buscassem ao Senhor, se porventura, tateando, o pudessem achar; ainda que não está longe de cada um de nós”. Vale ressaltar que os cristãos tradicionais têm a convicção de que toda a humanidade descenda de Adão e Eva, em vista de que Eva é referida como “a mãe de todos os viventes” (Gênesis 3:20). Os detratores do etnonacionalismo pintam um alvo na testa de todo etnonacionalista, alegando que os etnonacionalistas não afirmam a unidade dos homens sob Adão como representante humano. Ora, foi pela unidade da aliança que o pecado original se transferiu para toda a humanidade (Romanos 5:12). Ocorre que a comum descendência de Adão não muda o fato de que Deus separou as nações e indicou suas respectivas obrigações e lugares de habitação. Notar que o versículo 27 revela a razão de Deus ter feito isso. Deus assim fez para que o homem o buscasse e encontrasse! Importa observar que ninguém se encontra com Deus por uma questão de sua habilidade natural (1 Coríntios 2:14), mas é claro que Deus usa as distintas nações como instrumentos para operar a salvação por sua soberana vontade, da mesma forma como Ele se serve de cônjuges fidos para santificar e redimir seus infidos maridos ou mulheres (1 Coríntios 7:14).

Algumas pessoas argumentam que esse propósito das distinções nacionais tenha sido transitório e que essas distinções devieram obscurecidas ou foram superadas pela descida do Espírito Santo no Pentecostes, conforme referido em Atos 2. O problema com essa interpretação é que ela não condiz com a narrativa. Se, no Pentecostes, tivera Deus pretendido reunir o povo num só corpo político, então todos ali voltariam a falar numa só língua, o que seria condição favorável à sua unidade. Ao contrário disso, lemos que Deus fez que o apóstolo Pedro pregasse na língua daqueles que o ouviam! Importa apontar, também, que as pessoas reunidas no Pentecostes eram piedosos israelitas chegados a Jerusalém das diferentes regiões onde residiam. Pentecostes não foi um evento que se possa comparar a uma assembleia das Nações Unidas. O povo presente ali era bastante homogêneo etnicamente. Além disso, Pentecostes foi o batismo de Babel. O Dr. Francis Nigel Lee [1934-2011], no seu Race, people and nationality, explica bastante concisamente a relação entre Babel e Pentecostes:

Pentecostes consagra a legitimidade da separação das nacionalidades ao invés de reprová-la. Com efeito, mesmo no advento da nova terra depois da segunda vinda de Cristo, é-nos dito que aqueles das nações que forem salvas caminharão à luz da Jerusalém celestial, e que os reis da Terra levarão a glória e a honra — os tesouros culturais — de suas nações para ela… Mas não há em nenhum lugar das Escrituras nenhuma indicação de que os povos devam ser amalgamados numa só grande nação.

Qual, então, será o destino das nacionalidades separadas, como diz o Prof. Lee? As nações separadas estariam destinadas à “fusão” pela difusão do Evangelho? Ou as nacionalidades separadas persistirão? Os etnonacionalistas estamos convencidos de que as nacionalidades separadas manter-se-ão separadas até mesmo na próxima vida sob os novos céus da nova terra. Nós lemos mais sobre isso no Apocalipse de João, quando ele escreve que “E as nações dos salvos andarão à sua luz [da Jerusalém celestial]; e os reis da terra trarão para ela a sua glória e honra” (Apocalipse 21:24). O apóstolo João lobriga também cristãos de todo clã, tribo, povo e nação no céu (Apocalipse 5:9: 7:9), revelando que “no meio da sua praça […] estava a árvore da vida […]; e as folhas da árvore são para a saúde das nações” (Apocalipse 22:2). Na Igreja, pois — e não nos deve faltar coragem para afirmá-lo — há distintas e separadas nações. Quando alguém se torna cristão, conserva sua identidade étnica e sua identidade racial. Estes atributos não são perdidos em Cristo, ao contrário: são legitimados e santificados da mesma forma como são santificados ambos os sexos na distinção de sua identidade no seio da família e da Igreja. Que papel cumprem as nações numa sociedade cristã? Esta questão encontra-se na base da tradicional compreensão cristã da ordem social.

O papel da nacionalidade

[No artigo “A família de Deus”], J. C. Ryle escreveu que “a comunidade de sangue é a de mais forte coesão”. No Deuteronômio 23, Israel recebe as leis sobre quem pode ser integrado na congregação do Senhor. A congregação do Senhor significa, provavelmente, a igreja nacional de Israel. Importa frisar que a assimilação leva em conta como critérios de sua possibilidade a hereditariedade e a história. Os moabitas e os amonitas são completamente excluídos por causa de sua má história com os filhos de Israel, enquanto estes assimilam mais facilmente o Egito por sua condição de estranhos na terra dos faraós. Edom e Israel foram nações que tiveram uma história “complicada”, para dizer o mínimo. Mas os edomitas assimilam-se facilmente à congregação israelita em razão da consanguinidade, porquanto ambos os povos descendem do patriarca Isaque. Daí a referência a Edom como o irmão de Israel (Deuteronômio 23:7; Números 20:14). A importância da consanguinidade que se ensina nessa passagem mereceu a devida ênfase do renomado biblicista Matthew Henry, que sobre isso escreveu: “Por causa dessa relação de leis, embora muitos não a aceitam bem, a falta de bondade nas relações pessoais deve ser perdoada” (Complete commentary on the whole BibleDeuteronômio 23:1-8).

A identidade étnica consiste numa forma de extensão da família. A Bíblia não endossa a noção de uma nação proposicional consistente mais nas ideias do que na linhagem. Israel é a nação que serve de exemplo, e a voz de Deus chama as demais nações para segui-lo (Deuteronômio 4:5-7). O que se preconiza aí é que todas as nações, à semelhança de Israel, devam ser identificadas por critérios hereditários, ou seja, pela linhagem de seu povo. O modo mais fácil de entender a nação no sentido mais apropriado é considerá-la como uma família ampliada. O antigo Israel compunha-se de doze tribos originárias do seu patriarca Jacó, as quais eram identificadas pelas famílias de que se formavam. Os primeiros oito capítulos do 1 Crônicas são dedicados a listar as famílias das tribos, porque “todo o Israel foi contado por genealogias” (Números 1-4; 1 Crônicas 1-8; 9:1).  

Os não israelitas eram chamados de estrangeiros ou viajores e deviam ser tratados justa e gentilmente (Êxodo 12:48s; 22:21; 23:9; Levítico 23:22; 24:22; Números 9:14; 15:15s, 29s). A melhor ideia que se pode fazer desses ádvenas é considerá-los como hóspedes convidados a uma casa. Enquanto hóspedes, deviam ser recebidos com as maiores gentilezas, mas não poderiam se adonar de nada do seu anfitrião. Aliás, o afluxo descontrolado de estrangeiros para minar as suas forças e consumir as suas riquezas é como Deus promete castigar a impenitência de Israel (Deuteronômio 28:32-36). Nas atuais circunstâncias dos Estados Unidos, esse medonho castigo parece estar sendo aplicado aos anglo-saxões. Até os pretos poderão perder o seu lugar nos Estados Unidos por sua infidelidade ao Evangelho, por força dessa mesma passagem bíblica, conforme a curiosa interpretação do Rev. Jesse Lee Peterson. A afinidade dada pelas relações de sangue são de interesse tanto para o governo da sociedade quanto para o direito de propriedade, porquanto só os israelitas podiam dispor da terra em caráter permanente, a qual era dividida conforme a identidade tribal.

O princípio do mando patriarcal

A Bíblia coloca a autoridade familiar na mão dos maridos e dos pais.25 Samuel Rutherford, em Lex, rex (Q.XIII, pp. 51-52), escreveu:

O pátrio poder, por ter sido a primeira forma de governo e modelo para todas as outras, certamente consiste na modalidade superior de exercício cracial; porque é melhor que o meu pai me governe do que o faça um estranho e, por isso, o Senhor proibiu o seu povo de ter acima de si um estrangeiro como o seu rei. O Prelado discorda […], o pai [de um homem, entretanto,] nasceu para estar na obediência somente de seu próprio pai, por isso […] o governo natural não é senão o do pai e do marido.

Isso é considerado “racista”, “sexista” ou “chovinista” pelos padrões atuais, mas Deus não costuma dar muita importância à opinião dos homens! Sobre a autoridade e chefia do homem como também sobre a autoridade dos pais, confira as passagens seguintes: Gênesis 2:18; 3:16; Êxodo 20:12 (compare com Deuteronômio 5:16), Números 30; Isaías 3:16-24; 1 Coríntios 11:7-12; 14:34s; Efésios 5: 22-33; Colossenses 3: 18-21; 1 Timóteo 2: 9-15; Tito 2: 1-8; e Pedro 3: 1-7. Na Bíblia, a autoridade civil é uma extensão natural da autoridade familiar. O texto na base dessa posição está em Deuteronômio 17:15, determinando que Israel terá por rei sempre alguém dos seus homens, acima de quem só um irmão deles poderá estar, nunca um estrangeiro. Importa considerar que, na Bíblia, “irmãos” nem sempre significa cristãos. Disto temos exemplos em Números 20:14, Deuteronômio 1:16; 23:7, 2 Reis 10:13-14, Neemias 5:7, Jeremias 34:9 e Romanos 9:3, passagens nas quais essa palavra tem sentido étnico dado pela identidade de Israel. [John] Gill mostra, no seu Exposição da Bíblia, que o rei é irmão de Israel pela nação e pela religião, não só, exclusivamente, pela religião. Keil e Delitzsch, no seu Commentary on de Old Testament, indicam que o rei não é um forâneo ou não israelita.  Com base em Deuteronômio 17:15, [John] Knox, em seu combativo The first blast of the trumpet against the monstrous regiment of women [O primeiro toque da trombeta contra o monstruoso governo das mulheres], sugere que todas as mulheres e os estrangeiros estavam excluídos. Não é demais repetir que não podemos tomar os estranhos ou estrangeiros referidos como se todos fossem necessariamente infiéis. Disso temos exemplo em Isaías 56:3, passagem que afirma a possibilidade da aliança de Deus com forâneos. Também Samuel Rutherford toma Deuteronômio 17:15 como texto fundamental para a sua obra magna sobre o governo civil na qual ele comenta que “o rei é alguém da família” (Lex, rex, QXXV, pp.120-124). Eu diria, também, que os estrangeiros poderiam ser circuncidados (Êxodo 12:48), mas, ainda assim, não se confundiam com os filhos de Israel (Números 11:4), tampouco eram admitidos na magistratura (Deuteronômio 1:13-16; 17:15). A nação de Israel assentava-se na hereditariedade (Deuteronômio 15:12; 23:7; Números 20:14; Levítico 18:26; 22:18). Levítico 18:26 é especialmente revelador, porque aponta como os guardiães das leis de Deus aqueles da nação (éthnos) israelita e os estranhos (não israelitas) que habitavam entre eles. Este é um exemplo cabal de que a nação de Israel compunha-se pela hereditariedade, não apenas pela adesão convencional ou espiritual.

Há outras passagens semelhantes no livro de Samuel Rutherford que confirmam a natureza familial da autoridade civil. Os reis e rainhas são referidos como pais e mães. Outros trechos bíblicos desse mesmo teor: 2 Samuel 5:1 e 1 Crônicas 11:1, nos quais as tribos de Israel confirmam a legitimidade de Davi como postulante ao governo por serem elas da “carne e sangue” de Davi. As referências à carne, ao sangue indicam certa correlação dada pela hereditariedade, a qual não se aplicava a todos. Os chefes deviam ter com os seus subordinados afinidade de sangue, o que parece corresponder ao que diz Moisés em Deuteronômio 1:13-16 e 17:15. Isto estabelece o princípio básico para o governo das nações, conforme Eclesiástico 17:17.

 

(Ressalvemos que, como se sabe, o Eclesiástico é livro deuterocanônico. O ensino tradicional sobre o deuterocânon diz que os seus livros não são divinamente inspirados, acrescentando, não obstante, que sua leitura será de proveito para a edificação dos cristãos, como também que esses livros devem ser lidos à luz dos livros do primeiro cânon. Cristo e os apóstolos conheciam muito bem o deuterocânon, a cuja literatura o Novo Testamento faz muitas referências.)

Voltando à vaca fria: essa correlação de carne e sangue é a mesma que a Bíblia determina como regra para o casamento (Gênesis 2:23). Deus criou a mulher para ser a “auxiliadora” do seu marido, o que se cumpre da melhor forma pela relação de carne e osso de Adão e Eva. O intercasamento, ou seja, o casamento inter-racial, ao ligar cônjuges de distantes nações, quebra essa regra mencionada em Gênesis 2:23s para o casamento e o faz de forma análoga à poligamia e ao casamento entre pessoas de idades muito diferentes, que também transgridem a norma do casamento dada pelo exemplo de Adão e Eva. Menções negativas ao miscigenismo constam das passagens seguintes da Bíblia: Esdras 9:2; Jeremias 25:20; 24; 50:37; Ezequiel 30:5 e Daniel 2:43. Nesse mesmo sentido, Abraão, Isaque, Manoá e Tobias aconselham os seus filhos a não se casarem com pessoas de outros povos (cf. Gênesis 24:1-4, 37, 41; 26:34s; 27:46; 28:1s; 29:14; Juízes 14:3;Tobias 4:12).

Considerações de natureza civil também pesaram contra o casamento com gente dos povos que eram inimigos de Israel. A lei constante no Deuteronômio 23:1-8 era aplicada por Esdras e Neemias no intento de impedir casamentos com aqueles interessados no dano de Israel (Esdras 10 e Neemias 13 sobre a aplicação da lei do Deuteronômio 23). As razões práticas para o que reza o Deuteronômio 17:15 são óbvias. Se um estranho governa uma nação, ele buscará, naturalmente, expropriar o numerário e as propriedades do povo nativo para com essas riquezas beneficiar aqueles de sua própria carne e osso. Isto se aplica tanto a cristãos quanto a não cristãos, porquanto muitas nações sempre existirão na Igreja, mesmo no céu (Apocalipse 21:24). Pode haver exceções a esta regra. Deus usou José, por algum tempo, como o sábio regente a serviço do faraó no Egito (Gênesis 39:4-6), e o rei Ciro, por meio da promulgação de justo decreto, permitiu que os israelitas voltassem à sua pátria sob a proteção dele (2 Crônicas 36:22s). Estes casos são as exceções da regra e mostram um Deus que faz das tripas coração numa situação muito aquém da ideal.

A propriedade tribal

A Bíblia promove a propriedade privada. Isto é consubstancial ao mandamento contra o roubo (Êxodo 20:15; Deuteronômio 5:19). Deus é o verdadeiro e devido senhor de tudo quanto existe (Salmos 24:1), mas Ele delegou a zeladoria da criação para que a humanidade tivesse o domínio sobre todas as coisas criadas (Gênesis 1:28ss). Parte deste domínio executa-se por meio da propriedade privada. Deus dividiu a terra habitável entre diferentes nações (Deuteronômio 32:8 e Atos 17:26). Deus espera que as fronteiras que Ele estabeleceu sejam reconhecidas e respeitadas (Provérbios 22:28 e Deuteronômio 27:17). Isto não significa que as fronteiras políticas nunca devam mudar. Um bom exemplo foi o cisma político que dividiu a nação de Israel em dois reinos separados — Israel e Judá, depois da morte do rei Salomão. O fato da instabilidade dos limes políticos ao longo do tempo não anula o princípio e a relevância das fronteiras em geral sob a vontade de Deus.

A lei de Deus também provê Israel com a disposição de que a propriedade permanecesse com as famílias e clãs. O primogênito de cada família era o primeiro herdeiro das terras e outros bens de seu pai (Números 3) e, pois, tornar-se-ia o chefe da casa paterna depois da morte do progenitor, arcando também com os deveres de cuidado para com os seus familiares. Este é o conhecido direito da primogenitura e era praticado por injunção legal nas sociedades europeias até recentemente. Na falta de um herdeiro masculino, o marido mais velho de alguma das filhas seria o herdeiro do patrimônio. E se o esse genro fosse de outra tribo ou clã? Neste caso não ficaria fácil transferir o legado de uma família ou tribo para outra? Sim, ficaria, e justamente para evitar que isso acontecesse Deus prescreveu que as herdeiras se casassem com homens da tribo de seus pais (Números 27:1-11; 36). Seja lembrado que Israel foi-nos dado como exemplo do modo como as nações devem ordenar as suas sociedades (Deuteronômio 4:5-7). Fica claro, pois, que Deus zela pela herança física e na lei divina há cláusulas de proteção contra o esbanjamento ou a dissipação total ante o risco de propostas ou condições financeiras em circunstâncias adversas. A Bíblia promove o nacionalismo econômico, pelo que autoriza a tributação dos negócios de estrangeiros com os israelitas, como também instaura as leis do Jubileu, por força das quais as propriedades perdidas são recuperadas, e as dívidas, perdoadas, e os escravos, libertados (Levítico 25). Bem ao contrário disso e conforme a mentalidade nas condições da “economia global”, os banqueiros internacionais e os grandes negociantes buscam o lucro quando mesmo em prejuízo do bem-estar de seus compatriotas e até da própria família!

Essa questão remete à figura de Nabote, um dos melhores exemplos bíblicos de fidelidade à herança familiar. O rei Acabe ofereceu vultosa soma pela vinha de Nabote que ele tanto cobiçava. Nabote recusou a proposta, dizendo-lhe: “O SENHOR me livre de te ceder a herança dos meus antepassados” (1 Reis 21:3). Nabote expressa aí, claramente, que a sua lealdade a seus ancestrais é mais forte do que o seu interesse em ganhos imediatos. A ironia no laissez-faire capitalista é que, na ânsia do enriquecimento rápido, a mercancia da terra redunda na concentração de riqueza nas mãos de uma minoria de privilegiados no mundo dos negócios. As sociedades que negligenciam a sabedoria bíblica sofrem as consequência desse erro no desbarato de sua herança!

Os impérios e a nacionalidade proposicional

O princípio do governo parentelar e da propriedade tribal tem contra si a existência dos impérios. Um império é o reino que se estende sobre diversas tribos, nações e povos. A nacionalidade proposicional tem sua origem nos impérios. A primeira tentativa de construção de um império de que se tem registro é a de Ninrode na cidade de Babel, suso mencionada. O profeta Daniel também refere uma série de impérios que dominariam o mundo mediterrânico (Daniel 2; 7). Os impérios, geralmente, têm vida relativamente curta e são mantidos por meio de um poder militar agressivo (Daniel 2:37-40; 7:19). Os impérios são uma paródia do reino espiritual de Cristo. O império crístico, este sim, expandir-se-á até abarcar todas as nações e povos (Daniel 2:44; 7:13s; Apocalipse 5:9; 7:9), instaurando-se pacificamente pelo ministério do Espírito Santo, nunca pelo emprego de força militar (João 18:36).

Os Estados Unidos, tradicionalmente, não eram vistos como uma “nação proposicional” até recentemente na história. John Jay, o primeiro ministro da Justiça e coautor dos Federalist Papers, escreveu sobre a fundação dos Estados Unidos:

Com o mesmo prazer tenho observado muitas vezes que a Providência se agradou de nos dar um país integrado e um povo unido — um povo descendente dos mesmos ancestrais, falando a mesma língua, professando a mesma religião, aderente aos mesmos princípios de governo, muito similar em seus usos e costumes, e que por meio de suas assembleias, suas armas e esforços, lutando lado a lado numa longa e sangrenta guerra, nobremente estabeleceu a liberdade e a independência gerais (John Jay. Federalist Number 2).

 

Caso o leitor não saiba, com a frase “descendente dos mesmos ancestrais” John Jay refere-se àqueles americanos de origem europeia; e pela expressão “a mesma religião” ele quis dizer que os americanos professavam o cristianismo.

O problema subjacente às nações proposicionais é que elas sofrem conflitos internos devido às diferentes interpretações de suas proposições. Tomemos os Estados Unidos como exemplo. Os Estados Unidos são tidos por país proposicional unido na obediência a certos “valores”, como a “liberdade”, a “democracia” ou — este é o meu favorito: a decantada “tolerância”. Quem entende esses conceitos da mesma forma? Ninguém! Por isso é que os ciclos eleitorais não passam de acirrados debates sobre “valores” indefinidos e carentes de sentido. Os Estados Unidos vêm caindo na condição degenerada de nação proposicional nas últimas décadas, mas não foram a primeira nação proposicional a existir. O historiador greco-romano Públio Élio Aristides escreveu sobre a cidadania universal romana, extensivamente, qualificando-a como ferramenta para a  preservação do domínio sobre os povos submetidos ao império. Sobre isso, disse ele:

O mais notável e louvável de tudo é a grandeza de vossa concepção de cidadania. Não há nada de comparável no mundo. Vós haveis dividido toda a população do império — e ao dizer isso eu me refiro à população do mundo inteiro — em duas partes; numa parte, estão   aqueles mais cultos, virtuosos e capazes de todo lugar, que vós fizestes cidadãos e nacionais de Roma… Nessa categoria, nenhuma distância no mar ou na terra afasta um homem da cidadania. A Ásia e a Europa não se distinguem em relação a tal questão. Tudo está aberto para todos; e ninguém com a competência para um cargo ou responsabilidade se conta entre os alheios. Para esses, Roma nunca disse “não há mais vaga!”.

Na outra parte, na parte dos não contemplados, entre aqueles que permanecem estrangeiros, ninguém merece confiança ou alguma função pública. O que existe aí é uma espécie de “democracia mundial” para os mais ricos e poderosos, restando os demais sob o governo ou direção de um maioral… Vós separastes a humanidade entre romanos e não romanos… e por causa da divisão assim estabelecida, em toda cidade por todo o império há muitos forâneos que compartilham a cidadania convosco não menos do que com a mesma gente deles. E alguns desses cidadãos romanos em nenhuma vez nem sequer pisaram Roma.

Parece familiar? Essa descrição assusta por corresponder ao que se passa hoje nos Estados Unidos quanto às políticas de imigração e naturalização! No ano 212 d.C., o imperador Caracala estendeu a cidadania romana para todos os homens livres do império, da Britânia à Arábia, conforme a chamada Constituição Antonina. Quando os americanos promovem o conceito de nação proposicional na tentativa de “dar segurança para a democracia no mundo”, incorremos no erro de decalcar os piores aspectos da Roma pagã que tentou impor uma “democracia global” sob o domínio de um homem. A presente política religiosa dos Estados Unidos corresponde à mesma política desse tipo adotada na Roma imperialista. O mesmo é dizer que todas as religiões são toleradas, desde que obedientes ao Estado, mas Cristo não aceita rivais em matéria de religião (Mateus 12:30). Em Roma, César deve ser adorado como Deus, quaisquer sejam outros deuses que cada um possa adorar, e nos Estados Unidos atuais nós olhamos para o Estado assim como faziam os romanos, dele esperando a satisfação das nossas necessidades e mais comodidades.

Os Estados Unidos foram fundados segundo o modelo romano de um império proposicional? Ou foram fundados como nação bíblica radicada na história, na tradição, na consanguinidade e na fé cristã? Os Estados Unidos foram fundados pelos colonos na Virgínia e pelos peregrinos em Massachússetes como nação bíblica. No selo da carta da Companhia da Virgínia constava a imagem do rei inglês James I. Os peregrinos do Mayflower referiam-se a si mesmos como “súditos leais de nosso venerando senhor Rei James”, ou seja, eles se viam mais como súditos ingleses do que como cristãos sem soberano reconhecido a que devessem obediência no mundo. O presidente George Washington tratou de assegurar que a imigração e a naturalização estivessem restritas àqueles de “gente livre, branca e boa”. Não por acaso, a lei de naturalização de 1790 foi a primeira da política constitucional. Houvéssemos acatado a experiência e a sabedoria dos americanos das gerações passadas, não haveria religiões não cristãs ou anticristãs aqui nos Estados Unidos. O imperialismo e o marxismo cultural seguem abolindo as nossas fronteiras, em alguns casos já sem sentido, e suas leis substituem a lei de Deus como fonte da nossa política. Não evitaremos que recaia sobre nós o castigo de Deus prometido àqueles que desrespeitassem a sua lei e os seus preceitos (Deuteronômio 28:43s).

A defesa do etnonacionalismo

A esta altura, deve estar claro que não existe alternativa a não ser abraçar o etnonacionalismo, conforme estabelecido na Bíblia como a norma. A Europa deveio grandiosa pelo acatamento à lei de Deus em todas as coisas, no que se inclui o etnonacionalismo. Nós nos afastamos para longe da civilização que era a nossa e que prevalecia de forma tão evidente até algumas décadas atrás.  Durante os anos sessentas, o marxismo cultural engendrou o chamado “movimento dos direitos civis”, que instilou na sociedade a ideia abíblica dos “direitos iguais”, levando-nos à subversão da lei de Deus.

Como cristãos que somos, temos o dever moral de defender a ordem divina ameaçada em nossas vidas, famílias e sociedades. A Bíblia mostra-nos, claramente, que as nações devem estar ligadas pelos laços naturais do sangue e do solo. Devemos rejeitar as doutrinas que rejeitam a noção cristã do etnonacionalismo presente nas Escrituras Sagradas. Não foi por coincidência que rejeitamos a base cristã da identidade nacional quando, simultaneamente, rejeitamos a doutrina cristã sobre o casamento, os papéis sexuais e a moralidade. A refutação do etnonacionalismo não é mais do que um sintoma da refutação da própria lei de Deus na sua integridade. Fico triste de reconhecer que, em muitos casos, cristãos professos fazem exatamente isso.

A fundação da nação bíblica como definida na Tabela das Nações tem por base a comum ancestralidade, a comum religião, a comum história e costumes comuns, o que torna possível a mútua partilha de ideias e valores, condição sem a qual uma nação não passará de abstração jurídico-administrativa. Nos Estados Unidos, cometemos o erro que os romanos cometeram antes de nós e podemos não escapar do desastroso destino que foi o deles. Os cristãos europeus, legatários da Civilização Ocidental, estamos numa encruzilhada histórica. Ou continuamos no caminho insensato de nossos antecessores da Roma pagã até o abismo que a tragou, ou revivificamos o espírito do nacionalismo cristão, que tantas vezes livrou o Ocidente da ruína e preservou a sua civilização por muitas gerações dos povos europeus. A salvação está em retornar ao caminho reto antes palmilhado pela nossa gente (Jeremias 6:16) e de novo abraçar o Deus de nossos maiores. Só o Altíssimo pode reconstruir nossas cidades e revestir de carne os ossos secos de nossos avoengos (Ezequiel 37). Enfrentemos o futuro com otimismo, na esperança de que Deus resgate aqueles que perseveram na fé e reconstrua, mais uma vez, as ruínas onde agora habitamos (Isaías 1:9).

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Fonte: Faith & Heritage. Autor: Davis Carlton. Título original: A biblical defense of ethno-nationalism. Data de publicação: 19 de janeiro de 2011. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.

 

Marxismo e multiculturalismo

Frank Ellis

 

Nas funções da vida cotidiana, era necessário pensar antes de falar, pelo menos às vezes, sem dúvida, mas um membro do Partido chamado a proferir sentença jurídica ou ética devia disparar as opiniões corretas de forma automática, como se fosse uma metralhadora disparando munição.

(GEORGE ORWELL, 1984)

Nenhuma sociedade bem-sucedida mostra tendência espontânea para o multiculturalismo ou multirracialismo. Sociedades exitosas e estáveis revelam alto grau de homogeneidade. Aqueles que defendem o multiculturalismo não sabem disso ou, mais provavelmente, acreditam que para transformar as sociedades ocidentais em sociedades estritamente reguladas por burocracias rácico-feministas eles devam, primeiramente, solapar tais sociedades.

Essa transformação é tão radical e revolucionária quanto o projeto que estabeleceu o comunismo na União Soviética. Da mesma forma como todo aspecto da vida deveu ser colocado sob o controle dos comissários do povo para a aplicação do ideário comunista, os multiculturalistas buscam colocar sob sua vigilância e dominação todos os aspectos de nossas vidas. Ao contrário da dura tirania dos sovietes, o despotismo dos multiculturalistas dispõe de meios mais brandos, mas pelo resultado acabaremos trancafiados e fortemente atados como um prisioneiro no Gulague. A “correção política” de hoje representa uma etapa superior na evolução do terror e do menticídio comunistas.

Contrariamente ao comunismo, que foi óbvio implante alienígena, o multiculturalismo mostra-se particularmente pernicioso e de difícil erradicação pelo fato de haver sequestrado a infraestrutura moral e intelectual do Ocidente. Embora se coloque como campeão das mais caras convicções do Ocidente, ele é, na verdade, a perversão e o sistemático solapamento da própria ideia de Ocidente.

O que nós chamamos, atualmente, de “correção política” remonta à União Soviética dos anos vintes. Em russo, essa expressão se pronuncia como politicheskaya pravil’nost. Ela significou a extensão do poder político à educação, à psiquiatria, à ética e ao comportamento. Tratou-se de peça essencial do mecanismo para assegurar que todos os aspectos da vida estivessem de harmonia com a ortodoxia ideológica — o que é marca típica dos totalitarismos. No período depois de Stálin, o desrespeito à correção política era considerado sintoma de doença mental, e o “tratamento” era ministrado ao “paciente” no interior da prisão onde era internado.

Mao Tsé-Tung, o Grande Timoneiro, dizia que “Quem não tem a correta orientação política não tem espírito”. O pequeno livro vermelho de Mao é repleto de exortações à obediência ante os ditames do pensamento comunista e, por volta dos anos sessentas, a correção política maoísta estava bem estabelecida nas universidades americanas. A fase final de seu desenvolvimento, que agora presenciamos, resulta do cruzamento com todas as mais recentes doutrinas: o antirracismo, o feminismo, o estruturalismo e o pós-modernismo, que prevalecem nos currículos universitários. O resultado disso está na nova e virulenta ressurgência do totalitarismo, cujas semelhanças com o período comunista são óbvias. Os dogmas do presente exigem o controle rígido da linguagem, do pensamento, do comportamento, e seus transgressores são tratados como se fossem mentalmente desequilibrados. O mesmo acontecia com os dissidentes soviéticos.

Há quem tenha argumentado não ser justo descrever o regime de Stálin como “totalitário”, porquanto um só homem, mesmo exercendo o poder de forma muito bruta, não teria como controlar todas as funções do Estado. Pois é, mas isso não seria preciso. O totalitarismo foi muito mais um estado de terror, de censura e de campos de concentração; consistiu num estado mental no qual a própria ideia de um ponto de vista privado ou opinião foi eliminada. O propagandista totalitário impõe os conceitos de que escravidão é liberdade, miséria é abundância, ignorância é conhecimento e de que a sociedade mais rigidamente fechada é a mais aberta do mundo. Então, uma vez que certa parte de sua população passe a “pensar” assim, uma sociedade devém funcionalmente totalitária, mesmo quando um só ditador não possa pessoalmente controlar tudo.

Atualmente, sabemos muito bem disto, tentam fazer parecer verdade que diversidade é força, perversidade é virtude, sucesso é opressão e que a repetição incessante dessas ideias é forma de pregar “tolerância e diversidade”. Na verdade, a revolução multicultural suscita a subversão em toda parte, da mesma forma como fizeram as revoluções comunistas: o ativismo judicial mina a liberdade pública; a “tolerância” solapa as condições que fazem possível a verdadeira tolerância; as universidades, que deveriam ser santuários da pesquisa livre, oráculos da ciência, sofrem censura que se compara àquela dos sovietes. Ao mesmo tempo e de forma obsessiva, forçam a aceitação da igualdade como valor absoluto: a Bíblia, Shakespeare e a “música” repe são textos de “perspectivas igualmente válidas”; a desviância e a criminalidade são tomadas em conta de “estilos de vida alternativos”. Atualmente, Crime e castigo, o livro de Dostoiévsky, teria o título “Crime e aconselhamento”.

 

Na época do comunismo, o Estado totalitário tinha por base a violência. Os expurgos dos anos trintas e o Grande Terror (que serviu de modelo para a Revolução Cultural maoísta) valiam-se da violência contra os “inimigos de classe” para reduzi-los à obediência. Os membros do Partido assinavam sentenças de morte para os “inimigos do povo”, sabendo que eram inocentes, mas acreditavam na correção política das acusações. Na década desde 1930, a noção de culpa coletiva “justificou” o assassinato de milhões de camponeses russos. Como refere Robert Conquest em The Harvest of Sorrow (p. 143), a visão que o Estado tinha do campo se resumia na fórmula “Nenhum camponês é culpado de nada, mas a classe camponesa é culpada de tudo”. A criminalização de instituições e grupos inteiros torna muito mais fácil a transformação total e totalitária da sociedade.

Daí a maravilha que é o “racismo” e o “sexismo” para os profligadores da cultura — o pecado pode se estender para além dos indivíduos e macular também as instituições, a literatura, a linguagem, a história, as leis, os costumes, as civilizações. A acusação de “racismo institucional” não é diferente de declarar toda uma classe econômica como inimiga do povo. O “racismo”, o “sexismo” são armas de assalto do multiculturalismo, suas Grandes Ideias, assim como foi a guerra de classes para os comunistas, e os efeitos são os mesmos. Se um crime pode ser coletivizado, todos podem ser culpados por sua participação num grupo errado. Os jovens brancos preteridos nas escolhas oficiais do direito racial são a versão atualizada dos camponeses russos. Mesmo que nenhum dos jovens brancos nunca tenha oprimido ninguém, eles “pertencem a uma raça que é culpada de tudo”.

O propósito dessas campanhas multiculturais é destruir a autonomia consciencial, o ego de cada pessoa, no que estão tendo sucesso. A boca se move, os gestos corretos são feitos, mas é a boca e os gestos de um zumbi, de um novo homem soviético, tão manipulável como uma personagem de videojogo [no original: PC-man]. Quando, então, certa proporção de gente tiver sido condicionada dessa forma, a violência não será mais necessária. Um sólido Estado totalitário se estabelece, e a vasta maioria sabe o que dela se espera e cumpre os papéis que lhe são atribuídos.

O experimento russo com a revolução e a engenharia social totalitária foi bastante retratada por dois dos maiores escritores do país, Dostoiévsky e Soljenítsin. Eles dissecaram brilhantemente os métodos e a psicologia do controle totalitário. Os demônios, de Dostoiévsky, é a mais penetrante e perturbadora análise da mente revolucionária e utópica na literatura do mundo. Os “demônios” são os estudantes radicais das classes média e superior que flertam com alguma coisa que eles não compreendem. A classe dirigente tentou contentá-los. As universidades haviam declarado guerra à sociedade em geral. O clamor dos estudantes é por liberdade: queriam se livrar das normas sociais estabelecidas, dos costumes, da desigualdade, do passado.

A queda da Rússia no vício e na insanidade é um grande sinal de perigo dado a toda nação que declara guerra ao seu passado na esperança de construir o paraíso terrenal. Dostoiévsky não viveu para ver as abominações que previu, mas Soljenítsin as sofreu de forma pessoal e direta. O arquipélago Gulague e Agosto de 1914 podem ser vistos como história das ideias, como tentativas de explicar o transe por que passou a Rússia depois de 1917.

Soljenítsin atribui à educação e à visão dos professores sobre o seu trabalho as maiores causas não só da hostilidade às formas tradicionais da autoridade como também da sedução da juventude russa pelas ideias revolucionárias. No Ocidente, durante os anos sessentas e setentas — período que, generalizando, podemos chamar de “os sessentas” — nós ouvimos o que foi um poderoso eco da capitulação mental coletiva da Rússia desde 1870 e por todo o tempo da revolução.

Um dos ecos do marxismo que ainda ressoam hoje é a ideia de que a verdade reside na classe (ou no sexo, ou na raça, ou na orientação erótica). A verdade não é algo a ser buscado pela perquirição racional, mas depende da perspectiva de quem fala dela. No universo multicultural, a opinião de uma pessoa é “valorizada” (eles adoram essa palavra) conforme a classe a que pertença. As feministas, os pretos, os ambientalistas, os homossexuais alegam dizer a verdade porque são “oprimidos”. Afundados na miséria da “opressão”, eles podem divisar mais claramente a verdade do que os homens brancos e heterossexuais que os “oprimem”. Temos aqui o velho legado mítico da superioridade moral e intelectual do proletariado marxista sobre a burguesia passado aos novos agentes da revolução, que o recebem e renovam. Atualmente, a “opressão” confere uma “perspectiva privilegiada”, que na sua essência é infalível. Como disse Robert Bork em seu Slouching Towards Gomorrah, os pretos e as feministas são “ferrenhos contestadores da argumentação lógica” — assim como eram os crentes mais exemplares do comunismo.

De fato, ativistas do feminismo e do antirracismo rejeitam abertamente a verdade objetiva. Sentindo-se confiantes por terem intimidado a oposição, fazem todo tipo de demanda, partindo do pressuposto de que homens e mulheres são iguais quanto a tudo. Quando os resultados não correspondem às crenças, nisto encontram mais uma evidência da malvadeza do homem branco.

Uma coisa das mais deprimentes no Ocidente hoje, especialmente nas universidades e na mídia, é a aceitação do feminismo como importante contribuição dada à ciência e a submissão a todos os seus absurdos. Curiosamente, isto não requer violência física. O desejo de ser aceito é o que  dobra as pessoas diante desses pretensos revolucionários de classe média. Piotr Verkovensky, o assassino e agitador de Os demônios, diz com desdém sobre isso que “só preciso elevar a minha voz e dizer para eles que não são tão liberais quanto necessário”. Os mistificadores do antirracismo, obviamente, jogam o mesmo jogo: acusam liberais do final do século XX de “racismo” ou “sexismo” para depois vê-los num ritual de autoflagelação e de autocrítica maoísta como expiação de sua “culpa”. Até mesmo os “conservadores” dobram a cerviz ao ressoar dessas palavras.

Antigas liberdades e pressupostos de inocência não significam mais nada quando se trata de “racismo”: o réu é culpado até prova em contrário, prova quase impossível e, em todo caso, o suspeito será sempre um suspeito. Hoje em dia, uma acusação de “racismo” tem o mesmo efeito de uma acusação de bruxaria na Salém do século XVII.

Se não fossem as draconianas consequências que podem ter as acusações de “racismo”, a ideia de que todos devam “valorizar a diversidade” seria apenas ridícula. Se a “diversidade” produzisse benefícios reais, os brancos seriam os primeiros a desejar mais “diversidade” e, decerto, demandariam que mais cidades dos Estados Unidos e da Europa fossem entregues aos imigrantes. Ocorre que os nativos não têm nenhuma pressa de abraçar a “diversidade” e o multiculturalismo; na verdade, eles batem a linda plumagem, desabaladamente, na direção contrária. Valorizar a “diversidade” é distração de gente que não “goza” dos seus “benefícios”.

Uma sociedade multicultural tende naturalmente para o conflito, não para a harmonia. Isso explica o enorme crescimento das burocracias governamentais que lidam com a resolução de problemas relativos a disputas raciais e culturais. Estas disputas nunca poderão ser resolvidas, porque os burocratas não reconhecem uma de suas maiores causas: a raça. Todo a conversinha sobre o “multicultural” vem daí, mas seria mais exato falar do “multirracial”. Sempre mais leis e outras mudanças são introduzidas nas sociedades hospedeiras para fazê-las à imagem e semelhança das minorias raciais. Tal política só pode criar mais demandas e favorecer a guerra não declarada contra os brancos, sua civilização e a própria ideia do Ocidente.

Como uma coisa dessas é colocada em prática? A URSS tinha um sistema massivo de censura — os comunistas censuravam até mapas de rua — e cumpre notar que havia lá dois tipos de censura: a censura explícita das agências estatais e a outra mais sutil que era a autocensura, tão bem conhecida das populações das “democracias populares”.

A situação no Ocidente ainda não chegou a esse ponto. Não há nada que se compare à censura oficial de estilo soviético e, no entanto, dissidentes estão sendo deliberadamente cassados. Arthur Jensen, Hans Eysenck, J. Philippe Rushton, Chris Brand, Michael Levin e Glayde Whitney foram todos criminalizados em razão de seus pareceres sobre o problema racial. O caso do Prof. Rushton é especialmente preocupante, porque o seu trabalho acadêmico chegou a ser investigado pela polícia. Na tentativa do seu silenciamento, os censores apelaram a dispositivos legais da legislação canadense aplicada aos “discursos de ódio”. Este é um tipo de terror intelectual que não causaria surpresa na URSS. O fato de agora a repressão censorina existir num país que se orgulha de ser um pilar da democracia liberal no Ocidente é a mais perturbadora das consequências do multiculturalismo.

Uma modalidade de controle da opinião mais branda do que a censura direta tem a ver com os fictícios modelos sociais tão apregoados e de forma obsessiva. Atualmente, a temática do feminismo e do antirracismo é constantemente explorada no cinema e na televisão de harmonia com o princípio brechtiano de que o artista marxista não deve mostrar o mundo como ele é, mas sim como ele deve ser. Então, extraordinários homens e mulheres negros ganham vida nas telinhas e telonas como juízes salomônicos, policiais femininas quase santas, gênios da informática, altos comandantes militares, chefes políticos, brilhantes profissionais liberais… mas, claro, os bandidos e tarados são da mais pura raça branca. Essa produção cinematográfica é como que um plágio do realismo socialista de estilo soviético, com os idealizados proletários, tão vigorosos e enérgicos, que esmagavam a vermina capitalista.

O multiculturalismo tem as mesmas ambições que tinha o comunismo soviético. Ele é absolutista na execução de suas agendas, mas relativiza qualquer outra perspectiva quando se trata de atacar os seus inimigos. O multiculturalismo é uma ideologia para eliminar todas as outras ideologias. O estudo do totalitarismo multiculturalista leva a duas conclusões: primeira: o multiculturalismo tem por fim cancelar toda oposição em todo lugar e, na hipótese de sua vitória, não restará lugar seguro para os contrarrevolucionários no mundo; segunda: uma vez estabelecido o paraíso multicultural na Terra, ele será defendido por todos os meios e a qualquer custo, tarefa que ocupará todos os recursos do Estado e do capital associado, suas fundações, associações e grupos comunitários.

Uma sociedade sob tal poder estaria formada pelo totalitarismo para o totalitarismo. Ela pode não dispor de campos de extermínio, mas terá centros de reeducação e troca de consciência para a sensibilização e resgate daquelas pobres criaturas que ficaram de ouvido e acabaram aliciadas pelo “discurso hegemonista do homem branco”. Em vez do severo totalitarismo do Estado soviético, teríamos uma sua versão mais branda na sociedade multicultural, e as formas pensamentais de legitimação de sua burocracia seriam implantadas em nossas mentes, assim transformadas em sedes orgânicas da ideologia estatal. Nessa condição, o perigo do pensamento autônomo estaria esconjurado, e ninguém mais seria acometido da doença intelectual que é a heresia da incorreção política.

Se considerarmos o multiculturalismo como sendo, ainda, uma manifestação tardia do totalitarismo novecentista, poderíamos encontrar algum consolo no fato de a URSS ter acabado desabando? Será o multiculturalismo uma fase, uma crise passageira por que passa o Ocidente, ou ele representa alguma coisa estrutural e, talvez, irreversível?

Apesar dos esforços de elementos pró-soviéticos da quinta-coluna, o Ocidente reconhecia o império soviético como ameaça. Ao contrário do comunismo, o multiculturalismo não é reconhecido como ameaça da mesma gravidade. Por causa disto, muitos dos seus pressupostos e objetivos não sofrem contestação. Mesmo assim, ainda há motivos para algum otimismo, como o fato, por exemplo, da rápida vulgarização da conotação pejorativa da expressão “correção política”. Isso pegou os esquerdistas de surpresa, mas ainda é um pequeno avanço.

Em longo prazo, o mais importante campo de batalha contra o multiculturalismo estará nos Estados Unidos. A luta tende a ser de baixa intensidade, uma frustrante guerra de atrito. Se for perdida, a insanidade do multiculturalismo será parte da vida dos americanos. A paciência tem limite, porém. A certa altura, os americanos levantar-se-ão contra a punição que sofrem, como se fossem os culpados do fracasso dos negros. Deve ser considerada mais seriamente a advertência que fez o Prof. Michael Hart em seu livro The Real American Dilemma, ao apontar a possibilidade da desintegração dos Estados Unidos segundo linhas de clivagem racial. A história pode nos dar a lição de que os acontecimentos que se passaram na península Balcânica e estilhaçaram a antiga Iugoslávia não são peculiares àquela parte do mundo. A guerra racial não é alguma coisa buscada deliberadamente pelos abastados liberais de esquerda, mesmo porque eles não sabem o que fazem, mas sua política poderá ter essa consequência.

Até aqui, venho argumentando que as condições que engendraram a correção política e o multiculturalismo foram dadas pelo contexto histórico do catastrófico experimento utópico realizado na União Soviética. Não obstante, a mentalidade da subserviência multicultural é mais antiga. Em seu livro Reflexões sobre a revolução na França, Edmund Burke oferece uma descrição dos radicais franceses que continua relevante 200 anos depois de escrita:

Eles não têm nenhum respeito pelo saber dos outros; eles o dispensam pela demasiada confiança que têm neles mesmos. Eles acham que as coisas antigas devam ser destruídas por serem antigas. Quanto às novas, não se preocupam com a duração de um edifício construído às pressas; porque a duração não é levada em conta por aqueles para quem nada ou quase nada fora feito antes do seu tempo, e para quem todas as esperanças ainda estão por serem encontradas.

O multiculturalismo, evidentemente, está muito longe de ser a solução para o conflito racial ou cultural. Bem ao contrário! O multiculturalismo é uma estrada demandando o tipo de inferno que várias vezes ensanguentou o século XX. As chamas desse inferno o próprio homem acende, depois de abandonar a razão e se revoltar contra a ordem de Deus. O incendiário e suas vítimas queimam-se no fogo.

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Fonte: American Renaissance. Autor: Frank Ellis. Título original: Marxism and Multiculturalism. Data de publicação: novembro de 1999. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.

 

 

 

O antirracismo é imoral

Autor: Emmanuel Spraguer.

 

  O leitor já considerou que tudo o que leu e ouviu sobre a moral e a verdade pode ser mentira?       E é mesmo.

A palavra “Racismo” tem recebido muitas definições sem pé nem cabeça. Na verdade, aqueles dependentes da confusão sentem-se melhor com a própria mistificação na manipulação semântica dessa palavra. Isso corresponde a manter um cachorro de várias cabeças guardando, eternamente, o templo da diversidade. O termo, simples conceito da antropossociologia, passou a ser arma ideológica das guerras culturais. E, como arma, não serve para construir, mas para destruir. Trata-se, essencialmente, sempre e em todo lugar, de uma tentativa fraudulenta de encerrar o debate civil e declarar vitória. O “argumento” mantém a discussão num nível muito baixo, adequado às pessoas sem capacidade maior de raciocínio, sem cultura e senso crítico, pessoas que podem sofrer de dissonância cognitiva e abraçam os seus manipuladores.

A definição de racismo mais “consagrada” é a da academia e da mídia, por sua maior adequação à moldura politicamente correta, tão ao gosto do oficialismo, sobeja dizê-lo. Conforme o estabilismo, então, o conceito de racismo apresenta os quatro elementos seguintes bastante distintos na sua compreensão: elemento 1: a crença na diferença biológica das raças e na importância dessa diferença; elemento 2: o ódio entre membros de raças diferentes; elemento 3: o preconceito racial; e, elemento 4: a discriminação racial.

O elemento 1 consiste em simples ideia ou, mais exatamente, numa proposição de verdade, nome que a lógica dá à atribuição de um predicado a qualquer sujeito. Os grão-senhores e mestres de nossos mestres do marxismo cultural dizem-nos que acreditar nas desigualdades raciais é decorrência de maldade inerente ao crente, coisa de gente ruim. Isto não é verdade, porém, nem teria como ser verdade. Só os imbecis e os totalitaristas pensam que apontar as desigualdades dos tipos humanos revela pravidade. E mais: alegar que uma pessoa seja má por desacreditar a igualdade da espécie humana implica o que os filósofos de todo o mundo chamam de “erro categórico”. O leitor percebe, pois, que o elemento 1 da definição, ou seja, a desigualdade das raças e sua importância, não passa de mero postulado sobre as relações sociais dadas pela raça. Duvidar da igualdade não é um ato moral e, pois, não pode estar sujeito a julgamento moral. Por exemplo, se eu dissesse a alguém que o céu é verde, e a pessoa respondesse dizendo que eu sou uma pessoa má por acreditar na cor verde do céu, eu poderia treplicar, denunciando ao meu interlocutor a grande confusão de lógica categorial na cabeça dele. Eu posso estar enganado quanto à cor do céu, mas isso não faria de mim uma pessoa má. Afirmar o contrário só poderia ser o resultado de uma total falta de compreensão do objeto da discussão; equivaleria a introduzir questões de moralidade em questões de fato. O comportamento de quem discute a cor do céu ou a cor das raças não faz da pessoa o réu de nenhum julgamento moral (nem deveria fazê-la réu de julgamento nenhum). Com efeito, não há nisso nenhuma consideração de natureza moral, trata-se apenas da discussão de como as coisas são ou não são no mundo exterior. Aqueles que dizem que “racistas são perversos porque acham  que as raças difiram nisto ou naquilo” são pessoas estúpidas. Esses “julgadores” são, na maioria dos casos, incapazes de compreender o que eles mesmos dizem, eles não têm consciência do quão doido é o “veredicto” que pronunciam. Este é um tipo claro e inconfundível de erro categórico. Levantar, discutir hipóteses ou acreditar na verdade delas, em se tratando de pôr em causa aspectos da realidade objetiva do mundo físico, não implica ato moral (ou imoral). As qualidades básicas dos atos morais não estão presentes aí. Atos morais ou mesmo alegações morais pertencem a categorias conceituais bem diferentes.

O elemento 1 não passa de pueril insulto àqueles que rejeitam o igualitarismo racial. A igualdade racial é de uma falsidade evidente. Trata-se de escalafobética ficção digna de um Lysenko. E a fé raivosa dos esquerdistas totalitários que acreditam nela não a pode transformar em verdade. Dar crédito à crença na igualdade das raças equivale a nada menos do que declarar guerra a uma básica verdade antropológica. As populações de raças diversas não são iguais nas suas capacidades. Elas não são nem remotamente iguais. Com efeito, à medida que se vão acumulando os dados probatórios das diferenças genéticas entre as populações humanas, até mesmo conhecidos cientistas judeus como David Reich começam a admitir, relutantemente, que o igualitarismo racial é intelectualmente insustentável. Posto isso, mesmo se o igualitarismo racial fosse verdadeiro, e este, com certeza, não é o caso, acreditar no contrário, ou seja, na desigualdade racial, não faria de ninguém uma pessoa imoral ou malvadona.

Passemos ao elemento 2, aquele concernente ao ódio, muito cacarejado atualmente. O ódio, para início de conversa, é fenômeno extremamente raro, especialmente no Ocidente moderno. Ainda que existente, de qualquer forma, o ódio é sempre situacional e efêmero, pois as situações na origem dele mudam e mudam rapidamente ao longo da história. O ódio não é nenhuma entidade, é só um sentimento, e os sentimentos, afinal, não são de fácil observação ou mensuração. Então, “denunciar” o ódio aqui e ali, com tanta frequência e certeza, é alguma coisa de muita temeridade. Além disso, assim como os pensamentos ou as ideias, o “ódio” não é nenhuma coisa que possa ser moral ou imoral, porque não consiste num ato dirigido ao mundo exterior, tratando-se, antes, de algo inteiramente pessoal e interno ao indivíduo. Embora muito “denunciado” por aproveitadores de todo tipo, principalmente aqueles da militância negra e esquerdista, movidos por inconfessáveis interesses e “razões”, o ódio inter-racial não é algo de que os seus “denunciantes” tenham conhecimento e, também, por sua extrema raridade, é de mínima importância. O elemento 2 não é válido na definição de racismo, seu propósito é bem outro. Na verdade, ele serve, na forma de tipo criminal, como meio para caluniar e desacreditar oponentes políticos. Em outro plano, a história fala, e nela eu acredito, que o ódio pode ser útil e racional em certos contextos, mas não vale a pena tratar disso em relação ao conceito em tela, pelos motivos suso referidos.

Consabidamente, a discriminação racial, quando levada às últimas consequências, pode implicar coisas feias, como o conflito entre judeus e nativos na Alemanha. Por outro lado, o antirracismo, mesmo sem viés político, mesmo sem aplicação seletiva contra os brancos, se levado ao extremo, pode ser ainda pior. Aliás, o antirracismo “neutro” é o menos comum, embora assim o veja o homem comum. Na verdade, a aplicação dos princípios do antirracismo até o extremo de sua conclusão lógica resulta na destruição de povos e sociedades, automática ou voluntariamente. A recusa da distinção entre “nós” e “eles” no contexto de uma nação corresponde à abolição da própria nação. Da mesma forma, a recusa da distinção entre “nós” e “eles” no contexto de uma religião corresponde à abolição da própria religião. Se qualquer grupo deseja sobreviver, ele deve, forçosamente, tomar as medidas que protejam as características que o definem. Na ausência de medidas adequadas para esse fim, todo grupo terá determinado a própria extinção. A autoproteção coletiva faz-se ainda mais necessária no mundo moderno, submetido à forte pressão da migração para as áreas brancas e mais ricas, sem o que estas sucumbirão, rapidamente, em meio às invasões e ao parasitismo de grupos alógenos. Se as etnias bem-sucedidas não protegerem os seus próprios interesses, acabarão completamente tragadas pelas populações de crescimento demográfico explosivo, ávidas de gozar os benefícios do sucesso alheio, de que não são capazes e para o qual não contribuem.

O racismo extremamente discriminatório tem, pelo menos, mais a ver com as tendências naturais. Ele promove a competição aberta entre os grupos e consagra as formas de sucesso que a própria natureza recompensa desde sempre. Por outro lado, o antirracismo cifra-se, basicamente, no comunismo aplicado aos genes, às raças e às fronteiras. O antirracismo é anticompetitivo, inerentemente disgênico e, mais do que não progressivo, ele é antiprogressivo, e serve para que os povos mais vagabundos da Terra consumam o que ainda resta de belo, precioso e decente no planeta e na humanidade. O antirracismo é, também, basicamente antibiológico. O antirracismo quer que a evolução humana tenha terminado, como que por mágica e capricho, há 250 mil anos.  Compara-se a uma espécie de criacionismo para “esquerdiotas”, só que ao contrário. Os criacionistas acreditam que a Terra passou a existir 10 mil anos atrás. Os antirracistas, por sua vez, partem do pressuposto de que as forças evolucionárias que criaram o homem tenham deixado de existir há um quarto de milhão de anos, ou seja, quando a evolução afastou de nós os africanos subsaarianos.

O que os fanáticos acreditam em nome da ideologia ou religião é inacreditável. E pior ainda é o que fazem. Ocorre que o elemento 2 do conceito de racismo trata de um sentimento e, assim como o elemento 1, isto é, o desacreditar a igualdade, não pode, pois, estar sujeito a julgamento moral (ou de qualquer tipo). Como referido, o sentir não é objeto particularmente adequado a análises morais. Não obstante, aqueles intolerantes em nome da tolerância (G. Orwell explica) se arvoram em juízes da humanidade, literalmente. Os novos Lysenkos estão nos tribunais.

O critério dado pelo elemento 3, ou seja, o preconceito, o preconceito exogrupal, mais especificamente, não passa, na verdade, de um erro ou viés do pensamento. Trata-se, alternativamente, de uma falha estrutural ou sistêmica do raciocínio. Isto é algo mais ou menos inerente à psique humana e comum a todas as raças e povos (raça branca, inclusive). O preconceito de qualquer tipo, devo dizer, quando devidamente definido, não é alguma coisa que mereça comemoração. O problema é que os nossos supermestres antibrancos não o definem da forma apropriada. Como é típico deles, eles definem o preconceito como qualquer consideração politicamente incorreta a respeito de exogrupos (por exemplo, a conclusão de que os pretos sejam mais propensos à violência do que os brancos). Isto consiste numa extrema distorção do sentido adequado. O preconceito consiste num erro lógico. Chegar a conclusões imorais (o que não existe) ou inconvenientes não é o que caracteriza o preconceito. O verdadeiro preconceito significa o pretenso saber a que se chega por erro de raciocínio. Trata-se, pois, de uma falsa conclusão. Infelizmente, entretanto, os gênios do Judiciário não são capazes de proceder a essa distinção, decerto por preconceito. Na realidade, o “preconceito”, devidamente compreendido, não pode ser considerado erro moral, pois que se trata, isto sim, de um erro intelectual. Os erros intelectuais devem ser evitados, obviamente, mas nenhuma ponderação moral torna errada uma conclusão procedente de um raciocínio logicamente correto. Só a conclusão constante de um juízo de fato não correspondente à realidade pode estar errada. Nenhuma desaprovação moral pode falsear uma conclusão intelectualmente correta.

Em outras palavras, aquelas figuras influentes ou poderosas da mídia e do aparato do poder argumentando que “o preconceito é imoral” estão, simplesmente, equivocadas. Essas pessoas confundem as más ações que, algumas vezes, decorrem do preconceito com o próprio preconceito, como também confundem as más ações que, às vezes, decorrem dos pensamentos racistas com os próprios pensamentos. Entretanto, apenas os atos são susceptíveis de julgamento moral, os pensamentos ou processos de pensamento não o são. Além disso, certos pensamentos e ideologias não necessariamente acarretam ações determinadas, e quem diz o contrário revela ação desinformada e pensamento preconceituoso. E mais: os vieses e preconceitos, às vezes, levam a conclusões que os antirracistas defendem, como as conclusões em favor da falsa igualdade, e isto demonstra que o preconceito não está em nenhuma suposta qualidade moral da conclusão, mas sim na lógica do processo de cognição. Portanto, nenhuma censura deve ser aplicada a qualquer proposição de verdade em razão de sua simples correlação com certas ações ou ideologias políticas. Isto seria estúpido. A ideia de policiar ideias é ideia horrível, como também prática totalitária horrível.

Nós devemos, outrossim, diferençar o preconceito e o favoritismo de endogrupo. O favoritismo endogrupal consiste na atitude de maisquerer o endogrupo do que o exogrupo, pelo mais de proteção e conforto social no seu seio, em razão do compartir de vidas, valores e interesses e de tudo o mais que possa aproximar os seus membros a bem de maior coesão e harmonia do grupo. No caso de o próprio grupo ser mais produtivo, inteligente e ético, o endogrupismo terá base na realidade objetiva, ainda mais quando os grupos em competição tiverem garantida a sua liberdade para competir, caso em que a preferência social dada ao endogrupo dificilmente terá as suas raízes afundadas no preconceito, isto é, nalguma conclusão improcedente.

E, assim, chegamos ao elemento 4, o último que citamos na definição de racismo: a discriminação racial. A discriminação é o só fenômeno que pode, realmente, comportar julgamento moral. Desde logo, como decerto esperava o leitor, proponho que qualquer valor moral conducente à destruição dos grupos que o praticam — e o antirracismo conduz a essa catástrofe, não se possa reputar legítimo valor moral, pois se trata, antes, de manifestação de insanidade coletiva.

Uma das principais formas de discriminação racial é, por exemplo, a exclusão. Quais seriam, entretanto, as consequências da total falta de exclusão ou separação? As decorrências consistem na miscigenação, na desintegração cultural pelos empréstimos e ecletismos, na reescrita e releitura da própria história, na completa perda de identidade etc. Sem formas de controle e seleção de sua composição, um grupo não tem como proteger os seus membros, seus modos, costumes e genes, não pode nem mesmo sobreviver enquanto grupo distinto. Ele acabará assimilando o meio externo ou sendo assimilado nele. Segue daí que a política de combinar a abertura das fronteiras com as leis antidiscriminatórias de amplo alcance não se coloca apenas como má política, mas também como prática implícita e efetiva de genocídio. A discriminação racial na forma da exclusão é, pois, medida prática de defesa contra a penetração de elementos estranhos. O nível de gravidade da infecção étnica determinará a medida da desintegração dos traços que definem o grupo contaminado, que poderá, bem ou mal, sobreviver…  ou não.

No mundo moderno, a negligência na guarda dos limes em contexto nacional ou internacional atrai grandes populações que se deslocam das áreas pobres e miseráveis ou conflagradas para aqueloutras de paz e prosperidade. Afinal, por que povos bem-sucedidos emigrariam para países de merda? Por isso, no mundo atual, não assistimos apenas à transformação das melhores sociedades e populações, mas sim à sua destruição e substituição pelas piores sociedades e populações em termos morais, civilizacionais e genéticos. Por conseguinte, a luta sem fronteiras contra a discriminação, por sua própria natureza destrutiva, mostra-se ainda pior nas suas condições hodiernas, porque acarreta a degradação social, moral, cultural e racial no seio da “sociedade aberta” que a promove. Se um povo não permite a discriminação, esse povo se recusa a ser um povo. Se um povo adota tal valor moral como diretriz política e força-o contra si mesmo, estará buscando a extinção, o genocídio de que será a própria vítima. A proibição absoluta da discriminação de exogrupos é para o endogrupo o que o veneno é para o indivíduo.

Agora, uma pergunta ao leitor: você acha que transformar lugares prósperos, felizes e pacíficos do mundo em infernos é o correto, o maravilhoso, a coisa certa a fazer em nome da moral? Achamos que a resposta afirmativa indica forma de idiotia, mas não seria culpa do leitor, ninguém pede para ser idiota, e o idiota não sabe que é um idiota, como o louco não sabe de sua loucura. A loucura é triste e terrível forma de ilusão. O louco “pensa” que africanizar a Europa ou fazer do Brasil um gigantesco Haiti seja como que uma obrigação moral.

Na Alt-Right, dedicamo-nos a combater essa louca ilusão etnicamente suicidária. Em certos contextos, algum grau de discriminação racial não é apenas aceitável, mas também moralmente imperativo. A resistência ante exogrupos é o alimento que mantém vivos os povos e as civilizações e, ainda mais, fazem-nos prosperar. Qualquer grupo que rejeite a discriminação terá os seus dias contados neste mundo. O grupo “bonzinho” está fadado a ser substituído por outros que levarem mais seriamente em consideração os próprios interesses e que, de forma entusiasmada, discriminarem membros de exogrupos, como não brancos, esquerdistas antibrancos, mafomistas e quejandos. De fato, isto é o que, exatamente, está acontecendo no Ocidente hoje. Os maiorais-mores do marxismo cultural seguem indo sempre além e já negam aos brancos o direito à própria identidade. Mas, caro leitor, pense nisto, por favor: como um grupo pode sobreviver, quando nem os seus membros sabem que são os seus membros?

Então, dos quatro elementos referidos na definição institucionalizada e vulgar do racismo, apenas um é passível de julgamento moral (a discriminação). Vimos, entretanto, que a rejeição da discriminação não pode ser indiscriminada, a menos que se pense que os povos não se possam defender, mas a defesa do antirracismo absoluto é tarefa intelectual difícil e, politicamente, será ainda mais difícil, porque, em algum momento, a desterritorialização dos brancos irá trair as suas monstruosas consequências.

Portanto, podemos concluir, e o fazemos com segurança, que a proscrição completa da discriminação racial não se confunde com a moralidade, não lhe é nem consubstancial nem coextensiva. A Moralidade digna desse nome encontra-se em algum ponto entre a discriminação racial em todos os contextos e a discriminação racial em contexto nenhum.

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Fonte: Altright. Autor: Emmanuel Spraguer. Título original: Anti-racism is immoral. Data de publicação: [2018(?)]. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.

 

Alexander Dugin: Ucrânia—uma guerra entre dois mundos

Uma guerra entre dois mundos ou duas civilizações, no dizer de Alexander Dugin, numa análise profundíssima do conflito e seus desafios, como também dos riscos de aniquilação atômica.

Já se passou um ano desde o começo da Operação Militar Especial. Embora iniciada com essa denominação oficial, agora está claro que a Rússia se defronta com uma guerra difícil, que vai deixando de ser limitada. Não apenas contra a Ucrânia, enquanto regime, não como povo (daí a exigência de desnazificação política pleiteada inicialmente), mas também contra o “Ocidente coletivo”, ou seja, o bloco da Otan, basicamente (excetuada a posição especial da Turquia e da Hungria, que pretendem se manter neutras no conflito; os demais países da Otan participam da guerra ao lado da Ucrânia de um modo ou de outro).

Qual foi o erro do Ocidente?

O Ocidente, que acreditava na eficácia da avalanche de sanções contra a Rússia e na possibilidade de romper quase totalmente as suas ligações com a economia, a política e a diplomacia mundiais, controladas pelos Estados Unidos e seus aliados, não conseguiu alcançar esse objetivo. A economia russa manteve-se sólida, não tem havido protestos internos, a posição de Putin não se tornou vulnerável mas, ao contrário, ficou ainda mais forte. Não foi possível coagir a Rússia para fazê-la sustar as suas ações militares ou anular as decisões de incorporar novas entidades. Tampouco houve revoltas de oligarcas cujos bens tinham sido confiscados no Ocidente. A Rússia sobreviveu, contrariamente à firme convicção do Ocidente de que ela iria cair.

Desde o começo do conflito, a Rússia, ao se dar conta de que as relações com o Ocidente desmoronavam, voltou-se rapidamente para os países não ocidentais — sobretudo a China, o Irã, os países islâmicos, mas também a Índia, a América Latina e a África — declarando clara e enfaticamente sua determinação de construir um mundo multipolar. Em parte, a Rússia, enquanto tratava de reforçar a sua soberania, já seguia nesse sentido, mas de forma ainda vacilante, ainda incoerente, voltando sempre a buscar a sua integração no Ocidente global. Agora essa ilusão já se desfez, finalmente, e Moscou não tem outro remédio senão se lançar de cabeça na construção de uma ordem mundial multipolar. Isto já deu alguns resultados, mas estamos ainda no começo do caminho.

Os planos da Rússia mudaram radicalmente

Entretanto, as coisas não se passaram conforme desejava a Rússia. Aparentemente, o plano era golpear rápida e mortalmente a Ucrânia, sitiar Kieve e forçar a capitulação do regime de Zelensky. Não se esperava que o Dombás e, depois, a própria Crimeia fossem atacados, ataque que o Ocidente preparara, sob a falsa aparência formal dos acordos de Minske, manobra ardilosa que contou com o apoio das elites globalistas: Soros, Nuland, o próprio Biden, seu gabinete et caterva. Até então, o plano consistia em levar ao poder um político moderado (por exemplo, Medvedchuk) e começar a restabelecer as relações com o Ocidente (como após a reintegração da Crimeia). Não estava prevista nenhuma reforma econômica, ou política ou social significativa. Tudo deveria seguir como antes.

A história não quis que fosse assim, porém. Depois dos primeiros êxitos reais, tornaram-se evidentes alguns erros de cálculo na planificação estratégica de toda a Operação. Os militares, a elite e a sociedade não estavam preparados para uma confrontação séria, nem com o regime ucraniano nem, muito menos, com o Ocidente coletivo. A ofensiva estancou ante a desesperada e feroz resistência do oponente, que contava com o apoio da maquinaria militar otaniana numa dimensão nunca antes vista. Provavelmente, o Kremlin não teve em conta nem a disposição psicológica dos nazistas ucranianos a lutar até o último ucraniano, nem a grandeza da intervenção militar ocidental.

Além disso, não tivemos em conta os efeitos da intensa propaganda, dia a dia, durante oito anos, que inculcou, fortemente, a russofobia e o nacionalismo histéricos em toda a sociedade ucraniana.  Em 2014, a grande maioria do Leste da Ucrânia (Novirrússia) e a metade da população do Centro do país tinham disposição positiva em relação à Rússia, embora não tanto quanto os habitantes da Crimeia e do Dombás. Essa situação mudou em 2022. O ódio aos russos, agora, aumentou bastante, e as simpatias são reprimidas violentamente, não raro de forma direta, na base da pancadaria, da tortura. Em todo caso, os partidários ativos de Moscou na Ucrânia tornaram-se passivos e intimidados, enquanto os indecisos bandearam-se para o neonazismo ucraniano, estimulado de todas as formas possíveis pelo Ocidente (mirando fins puramente pragmáticos e geopolíticos).

A Ucrânia estava preparada

A Ucrânia estava mais preparada do que ninguém para as ações da Rússia, das quais já falava em 2014, quando Moscou não tinha nem a mais remota intenção de ampliar o conflito e quando a reunificação com a Crimeia parecia suficiente. Se algo surpreendeu o regime de Kieve foram precisamente os fracassos militares russos em seguida aos êxitos do começo. Isto elevou, enormemente, o moral da sociedade ucraniana, já impregnada de russofobia desenfreada e de nacionalismo exaltado. Chegou um momento que a Ucrânia resolver lutar para valer contra a Rússia até as últimas consequências. Kieve, dado o enorme patrocínio do Ocidente, acreditava na vitória, o que pesou muito como fator positivo na psicologia ucraniana.

O que colheu o regime de Kieve de surpresa foi apenas o ataque preventivo de Moscou, cuja preparação muitos interpretaram como blefe. Kieve planejou atacar o Dombás e se preparava para isso, segura de que Moscou não atacaria primeiro. De qualquer forma, o regime de Kieve também se preparou para repelir algum eventual ataque, que não estava fora de cogitação (ninguém se iludia a esse respeito). Durante oito anos, ininterruptamente, foram realizados trabalhos de reforço de várias linhas de defesa no Dombás, onde ocorreriam as principais batalhas, conforme se esperava. Os instrutores da Otan formaram unidades coesas e dispostas ao combate, saturando-as com meios técnicos dos mais avançados. O Ocidente não vacilou em aplaudir a criação de batalhões punitivos constituídos de neonazistas para tocar o terror massivo e direto contra a população civil do Dombás. E ali, justamente, foi mais difícil o avanço russo. A Ucrânia estava preparada para a guerra exatamente porque se dispunha a disparar primeiro a qualquer hora.

Moscou, por sua vez, manteve tudo em segredo até o último momento. A discrição fez que a opinião pública não estivesse de todo preparada para os acontecimentos desencadeados a partir do dia 24 de fevereiro de 2022.

A elite liberal russa é refém da Operação Militar Especial

A maior surpresa, porém, foi a da elite liberal pró-ocidental russa com o início da Operação Militar Especial. Essa elite estava, individual e quase institucionalmente, integrada ao mundo ocidental de forma profunda. A maioria conservava suas reservas de numerário (gigantescas, às vezes) no Ocidente e participava ativamente do mercado acionário e de outros negócios financeiros. A Operação Militar Especial colocou essa elite numa condição de risco de ruína total. E, na própria Rússia, muitos percebiam essa prática como uma traição aos interesses nacionais. Por isso, os liberais russos não acreditaram, até o último momento, que a Operação fosse começar e, quando começou, começaram a contar os dias do prazo para o seu final. Transformando-se numa guerra ampla e prolongada de resultado incerto, a Operação acabou sendo um desastre para todo esse segmento liberal da classe dirigente.

Existem aqueles da elite que ainda tentam, desesperadamente, deter a guerra (não lhes importa como), algo a que não estão dispostos nem Putin, nem as massas, nem Kieve, nem sequer o Ocidente. Os ocidentais se deram conta da debilidade da Rússia no conflito, e seguirão até o fim no intento de desestabilizar o Estado russo.

Aliados volúveis e solidão russa

Creio que os amigos da Rússia se sentiram, também, um pouco decepcionados com o primeiro ano da Operação Militar Especial. Muitos terão, provavelmente, pensado que suas capacidades militares eram tantas e tamanhas, e tão consolidadas, que o conflito com a Ucrânia seria questão a ser resolvida com rapidez e relativa facilidade. A transição ao mundo multipolar parecia já irreversível e natural para muitos, mas os problemas que se deparam à Rússia conduzem todos a uma situação de mais conflito e mais sangue.

Nesse contexto, as elites liberais ocidentais arrojaram-se, severa e desesperadamente, na luta para salvar a sua hegemonia unipolar, afrontando até mesmo o risco de uma guerra de grande escala com a participação direta da Otan, mesmo em se tratando de um conflito nuclear pleno. A China, a Índia, a Turquia e outros países islâmicos, assim como os Estados africanos e outros da América Latina estavam mal preparados para essa nova situação. Uma coisa é aproximar-se da Rússia na paz, reforçando implicitamente a sua soberania e construindo estruturas regionais e inter-regionais não ocidentais (mas tampouco antiocidentais!). Outra coisa é entrar numa guerra contra o Ocidente. Assim, embora tendo o apoio tácito dos partidários da multipolaridade (sobretudo as políticas amistosas da China, a solidariedade do Irã e a neutralidade da Índia e da Turquia), o dado essencial é que a Rússia está sozinha no combate contra o Ocidente.

Primeira fase: um começo rápido e vitorioso

O primeiro ano desta guerra teve várias fases. Em cada uma delas, as coisas mudaram muito na Rússia, na Ucrânia e na comunidade mundial.

A primeira fase dramática dos êxitos russos, na qual as tropas russas tomaram Sumy e Chemigove, chegando à Kieve pelo norte, foi recebida com fúria no Ocidente. A Rússia demonstrou seriedade na liberação do Dombás e, partindo da Crimeia, assumiu o controle de outras regiões, Kérson e Zaporísia, assim como parte da região de Karquive, Mariupol — uma cidade de importância estratégica da República Popular do Dombás, foi tomada a duras penas. Em geral, a Rússia, operando rápido como um raio para surpreender o oponente, logrou êxitos no princípio da Operação. Não obstante, ainda não conhecemos, exatamente, os erros cometidos nesta fase que foram a causa dos fracassos posteriores. Esta é uma questão ainda a ser investigada. Mas o certo é que erros foram cometidos.

Com sucessos visíveis e tangíveis, Moscou estava disposta a entabular negociações que consolidassem diplomaticamente os avanços militares. Mas Kieve não quis negociar.

Segunda fase: o fracasso lógico das negociações

Nessa altura, começou a segunda fase. Foi quando ficaram evidentes as falhas militares e estratégicas no planejamento da Operação, a inexatidão das previsões e a frustração da população por suas expectativas que não foram cumpridas. Outrossim, a esperada disposição de um grupo de oligarcas ucranianos para apoiar a Rússia, sob certas condições, não se efetivou.

A ofensiva vacilou em algumas zonas, e a Rússia se viu obrigada a recuar das posições que havia tomado. A cúpula militar tentou conseguir alguns ganhos mediante negociações em Istambul, mas isso não deu nenhum resultado.

As conversações deixaram de ter sentido, porque Kieve considerou que podia resolver o conflito a seu favor por via das armas.

A partir de então, havendo a opinião pública assimilado a feroz russofobia inculcada no trabalho da primeira fase, o Ocidente passou a prover a Ucrânia de todo tipo de armamento numa escala sem precedentes. Então, pouco a pouco, a situação começou a se deteriorar.

Terceira fase: ponto-morto

No verão de 2022, a situação mostrava sinais de estagnação, apesar de a Rússia haver obtido algumas vitórias em certas zonas. Em fins de maio, Mariupol tinha sido tomada.

A terceira fase durou até agosto. Durante esse período, se fez clara a força de uma contradição. Esta envolvia, de um lado, a ideia da Operação Militar Especial como operação rápida e leve, de pouca duração, que deveria entrar logo numa fase diplomática; e, de outro lado, a necessidade de lutar contra um inimigo fortemente armado, que contava com o apoio logístico, inteligencial, tecnológico, comunicacional e político de todo o Ocidente. E, numa frente de enorme extensão, Moscou seguia a orientação dada pela ideia inicial, evitando perturbar a sociedade no seu conjunto e sem se dirigir diretamente ao povo. Isso provocou certo conflito atitudinal entre aqueles na frente da guerra e aqueloutros na retaguarda, o que ensejou dissenções no seio do comando militar. Os dirigentes russos hesitavam em assumir a guerra na sua plenitude, protelando como podiam a mobilização parcial, que já se mostrava imperativa e se tornava questão de urgência.

Durante esse período, Kieve e o Ocidente como um todo recorreram a táticas terroristas. Basta referir os assassinatos de civis na própria Rússia, os ataques à bomba contra a ponte da Crimeia e, posteriormente, os atentados que destruíram os gasodutos do mar Báltico.

Quarta fase: contra-ataques do regime de Kieve

Assim, entramos na quarta fase, marcada pela contraofensiva das forças armadas ucranianas na região de Karquive, já sob controle parcial russo desde o começo da Operação. Os ataques ucranianos ficaram mais intensos também no resto da frente. E o fornecimento massivo de unidades Himars e de sistemas de comunicação satelital Starlink, junto com outra série de material militar, criaram graves problemas para o exército russo, para os quais ele não estava preparado na primeira fase.

A retirada do oblaste de karquive, a perda de Kupiansque e, também, de Krasny Liman, cidade da República Popular do Dombás, foi o resultado de uma “meia guerra” (para empregar a feliz definição de Vladlen Tatarsky). Além disso, os ataques contra territórios “antigos” aumentaram, havendo bombardeios regulares contra Belgorode e o oblaste de Kursque. O inimigo alcançou ainda alguns objetivos em áreas profundas do território russo por meio de aviação não tripulada.

Foi, então, que a Operação se converteu em guerra plena. Ou seja, os dirigentes russos, finalmente, assumiram as responsabilidades colocadas pelo fato consumado da guerra generalizada.

Quinta fase: a mudança decisiva

Depois desses fracassos, decorreu uma quinta fase que, embora tardiamente, mudou o curso das coisas. Putin toma as seguintes medidas: anúncio da mobilização parcial, recomposição da cúpula militar, criação do Conselho de Operações Especiais, subordinação da indústria militar a regime mais rigoroso, responsabilização mais severa de erros e delitos na esfera da defesa do Estado.

Essa fase culminou com o referendo sobre a integração de quatro entidades na Rússia — as regiões da RPD, da RPL, de Kérson e Zaporísia. Outro marco desse mesmo contexto foi o discurso de Putin de 30 de setembro, quando ele declarou, pela primeira vez e com todas as letras, a oposição da Rússia à hegemonia liberal ocidental. Putin afirmou sua plena e irreversível determinação de construir um mundo multipolar. Ele disse que havia começado a fase aguda da guerra das civilizações e acusou a moderna civilização ocidental de ser “satânica”. Posteriormente, discursando em Valdai, o presidente reafirmou e desenvolveu essas suas principais teses.

Mesmo que a Rússia, depois disso, tenha sido obrigada a render a praça de Kérson, os ataques do exército ucraniano cessaram com o recuo, as linhas de defesa russas foram reforçadas, e a guerra entrou numa nova fase.

O passo seguinte na escalada deu-se com os ataques missilísticos contra as infraestruturas técnico-militares e, às vezes, energéticas da Ucrânia, periodicamente destruídas.

A limpeza por dentro da sociedade teve início: os traidores e colaboradores do inimigo abandonaram a Rússia, os patriotas deixaram de ser um grupo marginal e sua postura de abnegada devoção à pátria se converteu — ao menos externamente — na corrente ética dominante. Anteriormente, os liberais costumavam recopilar denúncias sistemáticas contra alguém que mostrasse algum tipo de opinião contrária ao liberalismo, ao Ocidente etc.; agora, em vez disso, alguém com sentimentos liberais cai, automaticamente, na condição de suspeito de ser, no mínimo, um agente estrangeiro ou até traidor, ou sabotador ou simpatizante do terrorismo antirrusso. Seguiu-se a proibição de concertos e comícios daqueles explicitamente opostos à Operação Militar Especial. Destarte, a Rússia dava os primeiros passos no caminho do seu demudamento ideológico.

Sexta fase: o equilíbrio, novamente

Pouco a pouco, a frente se estabiliza, evoluindo para nova estagnação. Nesse momento, nenhum dos lados podia virar o jogo de nenhuma forma. A Rússia se reforçou com a mobilização de nova reserva. Moscou deu apoio aos voluntários e, principalmente, às forças de Wagner, as quais lograram importantes avanços, buscando a vitória em setores particulares do teatro de guerra.

As medidas necessárias para o abastecimento do exército foram providenciadas e, assim, a força passou a contar com o equipamento de que precisava. O movimento dos voluntários estava no seu maximante.

Essa sexta fase dura até agora. Ela se caracteriza por um relativo equilíbrio de poder. Ambas as partes não têm como avançar de forma decisiva e determinante em tal configuração. Porém, Moscou, Kieve e Washington estão dispostas a continuar o enfrentamento pelo tempo que for necessário.

Em outras palavras, a questão de quando terminará o conflito na Ucrânia não tem mais relevância nem sentido. Apenas agora entramos, realmente, em guerra e só agora ganhamos consciência desse fato. Existimos, estando em guerra. Trata-se de existência difícil, trágica e dolorosa. A sociedade russa já se tinha desacostumado de situações assim havia muito tempo. A grande maioria nunca conheceu a realidade da guerra.

Armas nucleares: o argumento final

A gravidade do enfrentamento da Rússia com o Ocidente suscitou novas questões sobre a probabilidade de que o conflito resulte numa escalada nuclear. As armas nucleares táticas (ANT) e as armas nucleares estratégicas (ANE) foram objeto de debate em todas as instâncias, desde o governo até a mídia. Tratando-se de guerra no sentido amplo deste conceito, opondo o Ocidente à Rússia, o emprego desses tipos de armamento deixou de ser problema teórico para se converter em “solução” prática na argumentação das distintas partes envolvidas no conflito.

O estado da arte da tecnologia nuclear, altamente secreto, não permite que se saiba o nível a que chegou a capacidade destrutiva, mas se acredita (provavelmente com razão) que o poder nuclear russo e seus vetores — mísseis, submarinos e outros, excedam bem mais do que o necessário para destruir algumas vezes os Estados Unidos e os outros países da Otan. Por enquanto, a Otan não dispõe de meios suficientes para se proteger de um possível ataque nuclear russo. Assim, em caso de alguma emergência, a Rússia tem a opção de recorrer a esse argumento de última instância.

Putin manifestou-se de forma bastante clara sobre isso. Ele explicou que, em caso de derrota militar direta da Rússia nas mãos dos países da Otan e seus aliados, com ocupação e perda de soberania, a Rússia responderia com armas nucleares.

Soberania nuclear

Ao mesmo tempo, a Rússia também carece de defesas aéreas que a protejam, de forma confiável, de um ataque nuclear dos Estados Unidos. Em consequência, no estalar de um conflito nuclear de grande escala, não importando quem seja o primeiro a disparar, o apocalipse nuclear seria quase certo, perecendo a humanidade, como também, possivelmente, a própria vida em si mesma no planeta como um todo. As armas nucleares — especialmente as estratégicas, não podem ser usadas eficazmente por um só lado. O segundo responderá, e basta isso para queimar a humanidade no forno nuclear. Obviamente, o simples fato da posse de armas nucleares significa que, numa situação crítica, elas podem ser utilizadas por governantes soberanos, ou seja, pelas mais altas autoridades dos EUA e da Rússia. Quase ninguém mais é capaz de influir numa tal decisão sobre o suicídio global. Esse é o sentido da soberania nuclear. Putin foi bastante sincero a propósito das condições para o emprego de armas nucleares. Evidentemente, Washington tem sua própria opinião sobre o assunto, mas é claro que, em resposta a um hipotético ataque da Rússia, contra-atacaria da mesma forma.

O mundo pode chegar a esse ponto? Creio que sim.

Linhas vermelhas da guerra nuclear

O emprego das armas nucleares estratégicas implicará, quase certamente, o fim da humanidade, mas isso só ocorrerá quando certas linhas vermelhas forem cruzadas. Não se deve duvidar disto, doravante. O Ocidente ignorou as primeiras linhas vermelhas que a Rússia havia traçado antes do início da Operação Militar Especial, convencido de que Putin apenas blefava. O Ocidente se deixou convencer, ouvindo a elite liberal russa, que não queria acreditar na seriedade das advertências de Putin. Os avisos dele, entretanto, merecem respeitosa consideração.

Assim, pois, para Moscou, cruzar as linhas vermelhas — e estas são bastante claras — corresponderia a puxar o gatilho da guerra nuclear. E estas linhas consistem numa derrota crítica na guerra da Ucrânia com o envolvimento direto e intensivo dos EUA e da Otan no conflito. Quase se chegou a esse ponto na quarta fase da Operação, quando o mundo falava das armas nucleares como de emprego quase inevitável nesse momento. Apenas alguns êxitos do exército russo por meios de guerra convencionais evitaram que o pior ocorresse. Porém, isso não anulou completamente a ameaça nuclear. Para a Rússia, a questão da confrontação nuclear só deixará de estar na ordem do dia com a sua vitória. Sobre o significado desta “vitória”, falaremos um pouco mais adiante.

O Ocidente não tem motivo para usar armas nucleares

No presente, os Estados Unidos e a Otan não têm nenhuma razão que lhes recomende o emprego de armamento nuclear, nem a terão num futuro previsível. Recorreriam ao poder do átomo apenas em caso de ataque atômico da Rússia, o que não se daria sem alguma razão fundamental (ou seja, uma ameaça grave — um perigo fatal de descalabro militar). Para os Estados Unidos, mesmo a hipótese do domínio russo total da Ucrânia não significaria a violação de suas linhas vermelhas.

Num certo sentido, os Estados Unidos já conseguiram grandes resultados no seu enfrentamento com a Rússia. Eles sustaram a transição pacífica e sem sobressaltos para a multipolaridade, eles isolaram a Rússia do mundo ocidental, eles demonstraram certa debilidade da Rússia no âmbito militar e técnico, eles impuseram graves sanções, eles mancharam a imagem que tinham da Rússia seus aliados reais ou potenciais, eles atualizaram seu arsenal e colocaram à prova novas tecnologias militares em situação de combate real. O Ocidente evitará as armas atômicas. Submeter e desbaratar os russos na guerra convencional é mais interessante e seguro para eles. Se pudessem destroçar a Rússia sem sujá-la de radiação, os ocidentais ficariam mais do que encantados. O mesmo é dizer que, dada a posição do Ocidente, não será ele o primeiro a puxar o gatilho atômico, nem mesmo em longo prazo. Não é este o caso da Rússia. Ela pode ser a primeira a disparar, mas isto dependerá do que fizer o Ocidente. Se a Rússia não for levada para uma situação de perigo existencial extremo, seu arsenal atômico continuará fechado. A Rússia só arrastará a humanidade para o abismo da extinção na guerra atômica se ela mesma for empurrada para o abismo de sua própria aniquilação.

Kieve condenada

E, por último, cabe dizer que Kieve se encontra numa situação muito difícil. Depois que um míssil ucraniano caiu em território polonês, Zelensky chegou a pedir aos seus sócios e padrinhos ocidentais que desfechassem um ataque nuclear contra a Rússia. Qual a razão dessa solicitação?

Ocorre que o Ocidente coletivo, embora perda algo, já ganhou muito e não existe nenhuma ameaça mais crítica da Rússia contra os países europeus da Otan e, muito menos, contra os Estados Unidos. Tudo o que se diz sobre essa questão não passa de pura propaganda.

A Ucrânia, porém, está condenada. A Ucrânia está na situação em que já esteve diversas vezes no decorrer da história. Ela está entre o malho e a bigorna, ou seja, entre o Ocidente e o Império (branco ou vermelho). Os russos não farão nenhuma concessão, manter-se-ão firmes até a vitória final e definitiva. A vitória de Moscou significa a derrota total do regime nazi pró-ocidental de Kieve. Não haverá mais nenhuma Ucrânia como Estado nacional soberano, nem sequer no sentido mais formal desse conceito.

Em tal situação, Zelensky, em parte imitando Putin, proclama sua disposição para puxar o gatilho atômico. Como não haverá mais Ucrânia, então que desapareça também a humanidade. Em princípio, pode-se entender isso, pois se trata de uma aplicação da lógica do pensamento terrorista. Ocorre que Zelensky não tem nenhum gatilho atômico. E não o tem porque não tem soberania. Pedir aos Estados Unidos e à Otan que se suicidem mundialmente em nome da independência (que não passa de ficção) é, no mínimo, uma ingenuidade. Armas, sim; numerário, sim; apoio midiático, sim, obviamente; apoio político, sim; tudo o que quiserem, sim; mas armamento atômico, não!

A razão disso é demasiado óbvia. Como se pode crer seriamente que Washington — por mais fanáticos que sejam hoje os sequazes do globalismo, da unipolaridade e da preservação da hegemonia a qualquer custo — iria se dispor a destruir a humanidade aos brados de “Glória aos heróis!”? Mesmo perdendo toda a Ucrânia, o Ocidente não perderia muito. Então, sem os perigosos brinquedos atômicos que pede aos seus padrinhos ocidentais, os sonhos de grandeza mundial do regime nazista de Kieve terminariam no pesadelo de Zelensky. Não há duvidar disso.

Em outras palavras, as linhas vermelhas de Kieve não devem ser levadas a sério, por mais que Zelensky atue como chefe de bandos terroristas. Ele tomou por refém um país inteiro e ameaça destruir a humanidade.

O fim da guerra: os objetivos da Rússia

Decorrido um ano desde o começo da guerra na Ucrânia, está bastante claro que a Rússia não a pode perder. O desafio é existencial: ser ou não ser um país, ser ou não ser um Estado, ser ou não ser um povo. Não se trata de simples disputa territorial ou reforço de segurança. Era assim há um ano. Agora, não. Agora as coisas são muito mais agudas. A Rússia não pode perder, e a violação desta linha vermelha nos leva de novo ao tema do apocalipse atômico. O fim do mundo, todos deveriam saber disso, não depende apenas da decisão que Putin venha a tomar. Antes, resultaria da lógica de toda a trajetória histórica da Rússia, que em todas as etapas lutou para não cair na dependência do Ocidente. Os russos bateram-se vitoriosamente contra a Ordem Teutônica, contra a Polônia católica, contra o burguês Napoleão, contra o racista Hitler e derrotarão também, desta vez, os globalistas modernos. A Rússia será livre ou não será nada.

Uma pequena vitória: a liberação dos novos territórios

Nesta altura, fica faltando considerar aquilo em que consiste a vitória. Há três opções.

A escala mínima da vitória para a Rússia poderia ser, sob certas circunstâncias, tomar o controle de todos os territórios das quatro novas entidades constituintes da Federação Russa: as regiões da RPD, da RPL, de Kérson e de Zaporísia. Paralelamente, a Ucrânia seria desarmada e ficaria em condição de neutralidade pelo futuro previsível. Para isso, Kieve deve reconhecer e aceitar a situação de fato. Neste contexto, o processo de paz poderia começar.

Entretanto, tal cenário é muito improvável. Os êxitos relativos do regime de Kieve na região de Karquive deram aos nacionalistas ucranianos a esperança de que possam derrotar a Rússia. A feroz resistência no Dombás demonstra sua intenção de resistir até o final, inverter o curso da campanha e passar, novamente, à contraofensiva, inclusive na Crimeia. Por causa disso, fica totalmente improvável que as atuais autoridades de Kieve aceitem o que chamei de “a pequena vitória russa”.

Apesar disso, para os ocidentais, essa seria a melhor solução, já que com uma pausa nas hostilidades eles poderiam militarizar ainda mais a Ucrânia, como o fizeram pelo tempo que duraram os acordos de Minske. A própria Ucrânia — mesmo sem essas regiões — seria ainda um território enorme, e sua neutralidade poderia lhes parecer confusa na ambiguidade de seus termos, o que decerto explorariam para a vantagem do Ocidente.

Moscou entende tudo isso, Washington também entende, um pouco menos. Entretanto, os atuais dirigentes de Kieve não o querem entender de nenhuma forma.

Uma meia vitória: a liberação da Novirrússia

A versão intermediária da vitória para a Rússia seria a de liberar todo o território da Novirrússia histórica, que inclui a Crimeia, as quatro novas entidades russas e ainda as três regiões abarcando Karquive, Odessa e Nikolaieve (com partes de Krivói Rogue, Daniepre e Poltava). Isto completaria a divisão lógica da Ucrânia em Ucrânia Oriental e Ucrânia Ocidental, que possuem histórias, identidades e orientações geopolíticas diferentes. Tal solução seria aceitável para a Rússia e, sem dúvida, vista como vitória real, completando o que começou e logo se encerrou em 2014. No seu conjunto, também conviria ao Ocidente, cuja estratégia sofreria mais com a perda de Odessa. Porém, mesmo esta perda não seria tão crucial, dado existirem outros portos do mar Negro na Romênia, na Bulgária e na Turquia, três países da Otan.

Está claro que para Kieve tal cenário é, categoricamente, inaceitável, mas uma ressalva deve ser feita aqui. É categoricamente inaceitável para o regime atual e no atual contexto militoestratégico. No caso da liberação completa das quatro novas entidades da Federação e com a posterior entrada das tropas russas nas três novas regiões, a situação seria bem outra. O exército ucraniano, o estado psicológico da população, o potencial econômico e o próprio regime político de Zelensky estariam completamente quebrantados. A infraestrutura da economia seguiria sendo destruída pelos ataques russos, e as derrotas nas linhas de frente redundariam no total abatimento da sociedade, já exausta e sangrada pela guerra. Talvez haja um governo diferente em Kieve, podendo ser que até mude o governo de Washington, onde um governante realista iria, sem dúvida, reduzir o apoio à Ucrânia, simplesmente por calcular com sobriedade os interesses nacionais dos EUA, sem a crença fanática na globalização. Trump é um exemplo vivo de que tal situação é possível e, mais do que isso, provável.

No contexto da vitória intermediária, ou seja, a liberação completa da Novirrússia, seria extremamente vantajoso para Kieve e para o Ocidente negociar acordos de paz. Eles preservariam o resto da Ucrânia, pelo menos. Poder-se-ia estabelecer um novo Estado sem as restrições e obrigações atuais, que seria convertido — bem gradualmente — numa base a mais para cercar a Rússia. O projeto da Novirrússia afigura-se perfeitamente aceitável para o Ocidente, pois o restante da Ucrânia estaria salvo. Os ocidentais ganhariam com isso, futuramente, quando terão boa posição para voltar a confrontar a Rússia soberana.

Uma Grande Vitória: a liberação da Ucrânia

Por fim, uma vitória completa da Rússia implicaria a libertação de todo o território da Ucrânia do jugo do regime nazista pró-ocidental e o restabelecimento da unidade histórica tanto de um Estado eslavo oriental quanto de uma grande potência euro-asiática. A multipolaridade estaria consolidada, irreversivelmente, e a história da humanidade seria sacudida e revirada. Além disso, só uma vitória desse tipo permitiria o alcance pleno dos objetivos fixados no princípio: a desnazificação e a desmilitarização da Ucrânia.

O geopolítico atlantista Zbigniew Brzezinski escreveu com razão que “sem a Ucrânia, a Rússia não pode se converter num império”. É isso mesmo. Porém, nós podemos considerar essa fórmula de uma perspectiva euro-asiática: “Com a Ucrânia, a Rússia converter-se-á em um Império, isto é, um polo soberano do mundo multipolar”.

Mesmo com isso, o Ocidente não sofreria danos críticos num sentido militoestratégico e muito menos num sentido econômico. A Rússia continuaria isolada do Ocidente, demonizada aos olhos de muitos países. Sua influência na Europa cairia para quase zero, podendo ser até negativa. A comunidade atlântica estaria coesa como nunca antes, diante de inimigo tão perigoso. E a Rússia, excluída do Ocidente coletivo, sem tecnologia e fora das novas redes, ainda receberia uma importante população não de todo leal, quando não hostil, cuja integração num espaço unificado custaria esforços extraordinários a um país já cansado de guerra.

E a própria Ucrânia não estaria sob ocupação, mas seria parte de uma única nação sem nenhuma desvantagem étnica e com todas as perspectivas abertas para tomar posições e movimentar-se livremente por toda a Rússia. Caso se prefira, isto pode ser visto como a anexação da Rússia pela Ucrânia, e a antiga capital do Estado russo, Kieve, voltaria a estar no centro do mundo russo e não mais na sua periferia.

Mudar a fórmula russa

Por último, vale a pena considerar, nesta análise do primeiro ano da Operação Militar Especial, o impacto causado nas relações internacionais. Trata-se de uma avaliação teórica da transformação que a guerra engendrou no espaço dessas relações.

Aqui temos o seguinte panorama. As administrações de Clinton, do neoconservador Bush Jr. e de Obama, assim como a administração de Biden, são liberais e de linha dura em assuntos internacionais. Consideram que o mundo é global e está dirigido por um Governo Mundial mediante chefes de todos os Estados-nações. Até os próprios Estados Unidos não são, na visão deles, mais do que uma ferramenta temporária na mão da elite mundial cosmopolita. Vem daí a aversão, o ódio dos democratas e dos globalistas em relação a qualquer forma de patriotismo nos Estados Unidos e alhures. Eles não suportam nem mesmo a própria identidade tradicional dos seus conterrâneos.

Para os partidários do liberalismo nas relações internacionais, qualquer Estado-nação representa um obstáculo para o Governo Mundial. O Estado-nação soberano e forte, capaz de desafiar abertamente a elite liberal, é o verdadeiro inimigo a ser destruído.

Depois da queda da URSS, o mundo deixou de ser bipolar e se converteu em unipolar. Então, a elite globalista, os sequazes do liberalismo nas relações internacionais, tomaram as rédeas do governo da humanidade.

A Rússia desmembrada e derrotada dos anos noventas, como remanescente do segundo polo, sob Yeltsin, aceitou as regras do jogo e se prendeu à lógica dos liberais nas relações internacionais. Moscou só devia se integrar no mundo ocidental, soltar-se de sua antiquada soberania e começar a jogar conforme as regras dos donos da bola. O objetivo era obter pelo menos alguma distinção no futuro Governo do Mundo. Naquela altura, a nova cúpula oligárquica fez de tudo para se encaixar no mundo ocidental, e a qualquer custo, individualmente, inclusive.

Todas as instituições de ensino superior da Rússia puseram-se a serviço do liberalismo na questão das relações internacionais. O realismo político, embora ainda conhecido, foi esquecido, acabou equiparado ao “nacionalismo”, e nunca se pronunciou a palavra “soberania”.

Tudo mudou na realpolitik (mas não na educação) com a chegada de Putin. Desde o princípio, Putin foi um realista convicto no campo internacional e um firme defensor da Rússia soberana. Ao mesmo tempo, compartilhava plenamente da universalidade dos valores ocidentais, reconhecia a falta de alternativa ao mercado e à democracia, considerando o progresso social e tecnocientífico do Ocidente como a única via para o desenvolvimento da civilização. Apenas insistia um pouquinho demais na questão da soberania. Daí o mito de sua influência sobre Trump. Foi o realismo que ligou Putin a Trump. Em tudo o mais são muito diferentes. O realismo de Putin não é contra o Ocidente, senão contra o liberalismo nas relações internacionais, contra o unipolar Governo do Mundo. É o realismo estado-unidense, o chinês, o europeu ou qualquer outro.

Entretanto, a unipolaridade que se instaurou desde os princípios dos anos noventas deixou os liberais a cavaleiro nas relações internacionais. Acreditavam que a história tinha chegado ao fim, ou seja, que a confrontação de paradigmas ideológicos (tese de Fukuyama) havia terminado e que deveriam retomar com mais força o processo de unificação da humanidade sob o Governo Mundial. A consecução desse objetivo exigiria deles apenas que se dessem ao trabalho de eliminar os resíduos da soberania ainda existentes aqui e ali.

Essa linha estava em contradição com o realismo de Putin. E, não obstante, Putin buscou manter o equilíbrio e as relações com o Ocidente a todo custo. Isto era muito fácil com o realista Trump, que compreendia a vontade de soberania de Putin, mas se tornou impossível com Biden na Casa Branca. Ocorreu, pois, que Putin, como o realista que é, chegou ao limite das concessões que podia fazer na busca do compromisso. O Ocidente coletivo, guiado pelos liberais nas relações internacionais, pressionou cada vez mais a Rússia para que finalmente começasse a desmantelar a sua soberania em vez de fortalecê-la.

Esse conflito culminou com o início da Operação Militar Especial. Os globalistas participaram ativamente da militarização e nazificação da Ucrânia. Putin rebelou-se contra isso, porque compreendeu que o Ocidente coletivo estava se preparando para uma campanha simétrica de “desmilitarização” e “desnazificação” da própria Rússia. Os liberais fizeram cara de paisagem ante a rápida ascendência do neonazismo russófobo na Ucrânia, de que foram os patrocinadores. Eles fomentaram a sua militarização tanto quanto podiam, enquanto acusavam a Rússia de fazer o que eles faziam em favor do militarismo e do nazismo. E chegaram ao ponto de equiparar Putin com Hitler sob todos os aspectos.

Putin começou a Operação Militar Especial como um realista. Nada mais do que isso. Um ano depois, porém, a situação é outra. Ficou claro que a Rússia está em guerra contra a civilização liberal ocidental moderna como um todo, contra o globalismo e os valores que o Ocidente impõe ao mundo. Essa mudança havida na consciência russa da situação mundial talvez seja o resultado mais importante de toda a Operação Militar Especial.

A guerra, que antes tinha por fim a defesa da soberania, reveste-se agora do caráter de um choque entre civilizações. A Rússia já não se limita a insistir na governança independente, compartindo atitudes, critérios, normas, regras e valores ocidentais, mas atua como uma civilização independente, com suas próprias atitudes, critérios, normas, regras e valores. A Rússia não tem nada de nada a ver com o Ocidente.

Não é, a Rússia, um país europeu, mas sim uma civilização ortodoxa eurasiana. Assim falou Putin no seu discurso alusivo à admissão das quatro novas entidades à Federação Russa em 30 de setembro [de 2022]. Disse o mesmo no discurso de Valdai e, depois, em muitas outras ocasiões. Por último, no Decreto 809, Putin aprovou as bases da política estatal de proteção dos valores tradicionais russos, uma axiologia que difere bastante do liberalismo e que, em alguns pontos, confronta-o diretamente.

A Rússia mudou o seu paradigma do realismo para a teoria do mundo multipolar, ela rechaçou cabalmente o liberalismo em todas as suas formas, ela desafiou frontalmente a civilização ocidental moderna e ela contraditou a sua pretensão de ser universal. Putin já não acredita no Ocidente. Ele qualifica a civilização ocidental moderna de “satânica”. Nisto se pode identificar, facilmente, uma referência direta tanto à escatologia e à teologia ortodoxas quanto à confrontação dos sistemas capitalista e socialista da era de Stálin. A Rússia de hoje não é, consabidamente, um Estado socialista. Esta condição, porém, decorreu da derrota que a URSS sofreu no começo da última década do século XX, quando a Rússia e outros países pós-soviéticos devieram colônias ideológicas e econômicas do Ocidente global.

Todo o governo de Putin até o dia 24 de fevereiro de 2022 foi uma preparação para este momento decisivo. Só que, antes, ele se mantinha preso à política realista. A via ocidental dada pelo binômio “desenvolvimento e soberania”, nas condições heteronômicas de então, era seguida sem desvios. Agora, não, tudo mudou agora. Neste transcurso de um ano de duras provações e terríveis sacrifícios por que passou a Rússia na guerra, o novo lema e o novo rumo da via russa para o futuro têm expressão nas palavras “soberania e identidade civilizacional”.

Os nossos inimigos serviram de baliza para orientar a Rússia ao encontro de si mesma. Portanto, agora, afinal, a Rússia segue o seu próprio caminho.

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Fonte: El Manifiesto. Autor: Alexander Dugin. Título original: La guerra de Ucrania: una guerra entre dos mundos. Data de publicação: 18 de fevereiro de 2023. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.

 

Andrew Joyce resenha Julius Evola O mito do sangue: a gênese do racialismo

A história do meu interesse por Julius Evola é a prova de que nem sempre a primeira impressão é a que fica. Eu devia ter uns 25 anos, quando adquiri o meu primeiro livro do filósofo italiano — um bonito volume de capa dura de Revolta contra o mundo moderno. Eu fiquei pensando em encomendar o livro depois das referências de alguns amigos e outras pessoas de minhas relações, até que, finalmente, decidi comprar o livro depois de assistir ao discurso/palestra de 2010, como sempre excelente, de Jonathan Bowden, sobre Evola, intitulado The world’s Most Right Wing Thinker [O pensador mais direitista do mundo]. Após tantas recomendações, minha expectativa era bem alta e, talvez por isso, ou pelo conteúdo mesmo, no final eu estava decepcionado com o livro. Até então, eu havia feito algumas incursões nos trabalhos de Nietzsche e Heidegger e na filosofia anglo-americana, ou seja, a tradição da filosofia analítica, que parecia bastante atrativa para mim. Por conseguinte, eu desenvolvi um tipo de preconceito contra a filosofia continental (e contra os filósofos continentais), atribuindo-lhe como suas marcas a pose das mais pretensiosas, os argumentos tautológicos ou repetitivos e, entre estes, o aroma de marxismo mais do que suave. Ideologicamente falando, Evola estava a anos-luz de alguns charlatães de sua época, como Jean-Paul Sartre. Durante a leitura de Revolta, entre as suas elucubrações meio místicas, eu percebi que decerto Evola tivesse pensamentos extremamente importantes a oferecer. Daí mesmo decorreu a grande frustração de minha parte, porque o autor, não obstante as coisas de enorme valor que, aparentemente, tinha a dizer, expressou tudo numa linguagem enrolada, sem necessidade disso, e as ideias acabaram perdidas na confusa estrutura textual, infelizmente. Chateado com essa experiência, eu não voltaria a ler Evola nos anos seguintes. E esta foi uma reação de que hoje eu me arrependo.

 

No período que vai da minha leitura de Revolta até a posterior descoberta que fiz de Evola, começou a aumentar a importância atribuída ao italiano no meio hegemônico da academia, graças ao número crescente das traduções e à favorável recepção de sua obra. Os dois trabalhos mais importantes dos últimos anos são, provavelmente, os de Francesco Germinario e Paul Furlong. O primeiro escreveu Razza del Sangue, razza dello Spirito; Julius Evola, l’antisemitismo e il nazionalsocialismo (1930-1943), publicado pela Bollati Borlinghieri em 2001. O segundo escreveu Social and Political Thought of Julius Evola, publicado pela Routledge em 2013. No seu livro, Paul Furlong predicamenta Evola como o maior pensador anti-iluminista. Outro acadêmico, Marcus Hunt, diz de Paul Furlong que nesse seu livro ele “descarta de forma convincente a alegação que faz o acadêmico Roger Griffin [esquerdista e “antifascista”], assumida por muitos outros, de que Evola seria meramente um filósofo do fascismo, sugerindo, ao contrário, que o autor italiano deva ser compreendido ‘no contexto do pensamento conservador europeu desde 1789’”.(1)

 

O pensamento de Evola crescia em proeminência desde a década de 1970, quando se tornou influente, especialmente na Nova Direita francesa. Alguns dos notáveis textos daquela época são os seguintes: Julius Evola, le visionnaire foudroyé (Michel Angebert e Robert de Herte, 1977),  Julius Evola e l’affermazione assoluta (Philippe Baillet, 1978), La Terre de lumière: Le Nord et l’origine (Christophe Levalois, 1985), L’Empire Intérieur (Alain de Benoist, 1995) e Enquête sur la Tradition aujourd’hui (Arnaud Guyot-Jeannin, 1996). Isso, por sua vez, levou a uma crescente (e ainda presente) reação de preocupados acadêmicos esquerdistas, evidenciada, especialmente, nos trabalhos de Thomas Sheehan(2), Elisabetta Cassina Wolff(3), Stéphane François(4) e Franco Ferraresi, autores que descreveram Evola in 1987 como “o mais importante intelectual da Direita Radical na Europa contemporânea”.(5) Aliás, quando foi da vitória de Trump, a histeria midiática concentrou-se por certo tempo na declarada admiração de Steve Bannon pelo filósofo italiano.

 

Até essa altura, eu tinha conhecimento de que a mídia estava em polvorosa, mas não sabia nada de desenvolvimentos mais profundos até que, no ano passado [2017], eu encontrei um livro de Evola, por acaso, num sebo. O título era A Handbook for Right-Wing Youth [Guia para a juventude de direita]. Eu o peguei, dei uma folheada pela simples curiosidade e, então, tive um choque ao perceber o novo Evola dentro dele. Com cerca da metade do tamanho de Revolta, o livro que encontrei tinha um tom mais brando, porém era mais incisivo e direto. Não havia mais misticismo. O texto tratava, exclusivamente, de questões práticas, de ação. Era notavelmente atemporal, também, contendo sabedoria e alento que seriam efetivos e úteis para qualquer militante de nossa causa hoje. Gostei bastante do Handbook, Evola ganhou um lugar permanente na biblioteca da minha casa. Passei, então a estudá-lo, buscando conhecer os trabalhos dele e a recepção que estavam tendo da parte do hegemonismo acadêmico. Foi com grande interesse, nessa altura, que tive conhecimento de que a editora Arktos estava preparando a tradução e publicação de um outro trabalho de Evola — um livro da década de 1930, tratando da questão da raça e do racialismo. Mais intrigante ainda era o título provocativo: O mito do sangue. O livro da Arktos já circula com uma elegante capa alusiva ao estilo decô. Quando eu o abri, entretanto, eu pensava no que se me iria deparar ali. Seria o Evola místico que não me tinha interessado? Ou seria ainda outro lado do eclético pensador?

 

Desde a parte pré-textual, o livro já ganhava muito com o prefácio do tradutor. Em treze páginas muito bem escritas, John Bruce Leonard presta o utilíssimo serviço não só de explicar relevantes questões linguísticas como também de recapitular a história do texto, referindo que o livro fora originalmente publicado duas vezes — a primeira em 1937, a segunda em 1942. A publicação reiterada e as motivações por trás dela justificam o resumo de Leonard na declaração de que O mito do sangue é “em certos aspectos livro muito peculiar na obra evoliana, um que exige explanação especial”. Em O mito do sangue, o que Evola faz é, basicamente, indicar as referências que o seu mais completo parecer sobre a raça deveria considerar. Por isso o texto foi apresentado por Evola como a primeira parte de um estudo do assunto composto de duas partes — consistindo a segunda parte no livro Synthesis of the Doctrine of Race (tradução em preparação pela Arktos). Evola publicou Synthesis depois de 1937 e logo em seguida julgou que deveria republicar O mito do sangue com algumas significativas alterações. Estas mudanças, explica Leonard, resultaram de uma série de fatores, incluindo o fato de as ideias de Evola terem se tornado mais refinadas desde 1937. Ele pretendia, basicamente, revisar alguns dos trabalhos anteriores de acordo com as conclusões mais sólidas que alcançara na altura da publicação de Synthesis.

 

Entretanto, o mais importante, talvez, terá sido a mudança acentuada na ambiência imediata de Evola quanto ao pensamento racial. Um ano depois da primeira publicação de O mito do sangue,  foi aprovado como lei o Manifesto della razza — diploma legal explicitamente decalcado na legislação nacional-socialista, mas depreciado por Evola em O caminho do cinábrio como “trabalho atabalhoado”. Isto não quer dizer que Evola discordasse do princípio da legislação racial.    Na verdade, ele sentia que tais leis eram necessárias na Itália, “devido, principalmente, ao Império Italiano que emergia na África; elas eram convenientes para estabelecer um páthos de distância da parte dos italianos na interação deles com os africanos”. A objeção de Evola dizia respeito ao estilo, ao espírito, ao sentido da legislação racial em alguns relevantes aspectos. Com efeito, O mito do sangue representou a contribuição de Evola para a crítica construtiva do racialismo científico e materialista.

 

O livro divide-se em doze capítulos, abrangendo o que Evola chamou de “genealogia”, em vez de história, do pensamento racialista. Essas seções tratam de muitos tópicos dessa temática: as origens profundas da reflexão racialista, desde os tempos bíblicos até o século XVIII; a obra do conde Gobineau; a ciência racial de finais do século XIX; o trabalho de Houston Stewart Chamberlain; os pareceres do próprio Evola sobre a teoria da hereditariedade e a “tipologia racista”; as crenças contemporâneas concernentes à raça norte-atlântica; a historiografia de influência racial do tipo da produzida por Alfred Rosenberg; a Questão Judaica e o antissemitismo; o racialismo e a lei; as visões de Evola quanto às leis raciais da Alemanha; e, finalmente, a compreensão do próprio autor a respeito do pensamento racial de Adolf Hitler. De um ponto de vista puramente histórico, deve estar claro, agora, que O mito do sangue oferece notável conjunto de juízos sobre alguns dos mais relevantes e controversos assuntos da temática racial, tanto do tempo de Evola quanto do nosso.

 

Evola disserta sobre essas questões interligadas de modo bastante descritivo, objetivo, fazendo que, para alguns leitores, o texto possa parecer obscuro quanto ao sentido exato (ou essencial) em que consiste a sua crítica ao racialismo científico. (Furlong já sugeriu que Evola explica melhor o que as suas ideias não são do que o que elas são.) Minha própria impressão — e estou muito preparado para aceitar outras leituras, se necessárias — é que a crítica de Evola cifra-se a duas postulações principais recorrentes sutilmente ao longo de todo o texto.

Esses reparos podem ser expressos nos dois pontos seguintes:

  1. a) Evola acredita faltar ao pensamento racial em geral uma visão da raça de mais acentuado viés aristocrático, ou seja, ele critica o pressuposto de que ser ariano dependa apenas do nascimento, indicando se tratar também de uma questão de espírito, nobreza, caráter. Ferraresi cita Evola quanto à significação de povo: “Só em referência a uma elite pode-se dizer ‘é de raça’, ‘tem raça’ [no sentido dessa palavra no francês, isto é, ‘boa cepa’]: o povo é só gente, massa.” Em outras palavras, Evola defende um conceito de raça radicalmente anti-igualitário e aristocrático;
  2. b) Evola revela preocupação ou mesmo irritação com o lugar privilegiado concedido ao tipo nórdico em detrimento de outras raças europeias.

Essas críticas colocam as interpretações estritamente biológicas da raça numa condição especial no pensamento de Evola. Olindo de Napoli usa o descritor “racismo espiritual” para designar tal pensamento na Itália dos anos de 1930 e descreve Evola como “o ponto de referência para todos os racistas espirituais”.(6) Segundo a avaliação que Napoli faz de Evola, o trabalho altamente influente (pelo menos na Itália) do filósofo e sua “complexa teoria do racismo não tinham sido purgados de elementos biológicos: estes foram, meramente, subordinados aos componentes voluntarísticos num emaranhado de relações”. Da mesma forma, Wolff caracterizou o pensamento de Evola como,

 

racismo “totalitário” ou “tradicional”, inspirado pelo livro de Ludwig Ferdinand Clauss intitulado Rasse und Seele [Raça e alma]. De acordo com essa doutrina, as raças superiores são constituídas por pessoas dotadas de propriedades biológicas específicas, o que não é estranho ao racismo antropológico, mas essas pessoas possuem, ao mesmo tempo, características “espirituais”: são homens de um forte caráter, capazes do governo de si mesmos e do domínio sobre as próprias paixões, pelo que seguem “naturalmente” os valores da Tradição. Evola pretendeu, com o racismo totalitário, prover as diretrizes para a seleção de uma super-raça que pudesse dominar o mundo: uma combinação das raças aríaco-alemã e romana. O antissemitismo de Evola consistia também nesse mesmo tipo de racismo totalitário. Os judeus não eram estigmatizados enquanto exemplares de uma raça biológica, mas como aqueles identificados a uma mundivisão, a um modo de ser, a um modo de pensar — ou, mais simplesmente, a um espírito — que Evola associava ao que de “pior” e “mais decadente” existe na modernidade: a democracia, o igualitarismo e o materialismo.(7)

 

No primeiro capítulo, “Origens”, Evola diz que o racismo descansa sobre três princípios. O primeiro é que a humanidade é uma ficção abstrata. “A natureza humana é fundamentalmente diferençada.” Entre as raças diferentes prevalece a desigualdade, e a desigualdade é o dado original e a condição normal. O segundo, um princípio mais abstrato, é que cada raça possui um determinado “espírito”, refletido nas características físicas que lhe correspondem e nos métodos que lhe são próprios de construção civilizacional. O terceiro é que para uma raça importa permanecer fiel ao seu espírito e tipo, cumprindo as leis da hereditariedade e a não mistura de sangue papel de importância vital na história da raça. Evola afirma que os corolários desses princípios podem ser identificados em crenças da Antiguidade:

Depara-se-nos, já na Antiguidade, a ideia das diferenças inatas, congênitas e, nalguma medida, até mesmo “fatais”, entre os seres humanos, porque sua origem remonta a estádio pré-humano da evolução humana. Daí, por exemplo, aquela tradição, tradição também romana, pela qual todos aqueles conectados com as influências do Sol seriam dominus natus, ou seja, homens destinados, natural e inevitavelmente, à condição de dominadores.

 

Eu creio que Evola faz analogia mais apropriada ao mencionar os princípios raciais da Bíblia, contidos, especialmente, no Velho Testamento ou Torá. Em seu livro A people that shall dwell alone [Um povo que habitará só], Kevin MacDonald trata desses princípios de forma mais clara e científica, mas Evola está correto ao indicar “certos elementos racistas na teoria da descendência” de antigos textos judaicos. Julgo, também, bastante interessante a discussão de Evola sobre as ideias raciais do imperador Juliano, o Apóstata. Juliano rejeitou a ideia judaica, e depois cristã, de que toda a humanidade seria originária de um só par humano (isto é, Adão e Eva). Em vez disso, e conforme  com o pensamento gentílico, Juliano notou “como são tão diferentes os corpos de germanos e citas em relação aos de líbios e etíopes”, insistindo em que a criação dos diversos povos teria ocorrido separadamente.(8)

 

Passando aos períodos da Idade Média e do Renascimento, Evola faz referência à doutrina dos quatro humores, teorizada por Hipócrates e Galeno, considerando-a antecedente da compreensão biológica da raça, e refere, de passagem, os aditamentos que ela recebeu, posteriormente, de Paracelso, Jean Bodin e Pierre le Charron (este, em 1601, criou uma tipologia étnica). Evola vê a reflexão racial e eugênica, também, na obra de Tommaso Campanella (1589-1639). O autor de A cidade do Sol fazia chacota dos europeus de seu tempo, que “se dedicam com grande zelo ao melhoramento das raças de cachorro, cavalo e galinha, sem se dignarem de fazer o mesmo pela raça dos homens”. Evola revela que, para chegar à sua própria compreensão espiritual da raça, leu os trabalhos de Herder (com o seu conceito de Volksgeist [Espírito do Povo]), Fichte, Franz Bopp, August Friedrich Pott e Jakob Grimm.

 

No segundo capítulo, Evola muda o campo da sua genealogia da reflexão racial, que passa das considerações filosóficas para as categorias biológicas. Embora intitulado “The Doctrine of Count Gobineau” [A doutrina do conde Gobineau], o capítulo explora, contextualiza e conecta os trabalhos de Johann Friedrich Blumenbach, Peter Camper, Anders Retzius, Paul Broca, Fabre D’Olivet, Gustave D’Eichtal e Victor Courtet de L’Isle. Evola atribui à contribuição de Gobineau a descoberta das causas raciais da morte das civilizações. Evola escreve:

A chave para explicar o declínio da civilização é, segundo Gobineau, a degeneração étnica. Um povo degenera “porque ele deixa de ter o mesmo sangue em suas veias, porque a adulteração continuada do seu sangue termina por comprometer a sua qualidade”. Em outras palavras, apesar de a nação manter o nome dado por seus fundadores, esse nome não mais corresponde à mesma raça”.

 

A mim me pareceu interessante a ponderação de Evola a respeito de Gobineau, não apenas pelos conhecimentos e sua síntese, mas também pelo fato bastante óbvio de que Evola não gosta de certas coisas no trabalho do francês. Principalmente, por exemplo, não lhe agrada a discussão de Gobineau sobre a “Roma semítica”, na qual este questiona a infusão de sangue negro no estoque genético da população do Sul da Itália. Evola não explicita nunca o seu desagrado (aliás, compreensível), mas esse é um sentir velado que, certamente, se pode perceber em todo o tratamento mais amplo dado não só a Gobineau como a todos os outros pensadores nórdicos que vieram depois, mais sensíveis à questão da pureza racial. Dada a tacitez da discordância, o texto não se torna uma contestação aberta do tipo “bateu-levou”, mas a tensão discreta que o permeia só eleva, para mim, pessoalmente, a qualidade e o interesse de sua leitura. Na verdade, Evola mostra admiração pela maior parte do trabalho de Gobineau e abre o terceiro capítulo fazendo altos elogios ao francês, em cuja pessoa identifica a “manifestação de um instinto aristocrático”.

Nesse terceiro capítulo, “Desenvolvimentos”, Evola lida com o pensamento posterior a Gobineau, ocupando-se, máxime, com outro francês, o conde Georges Vacher de Lapouge. Ele atribui a Lapouge o crédito (se este for o termo correto) de haver dividido a raça branca, indo-europeia ou ariana em categorias como “o homem alpino”, “os homens oeste-atlânticos” etc. Em Lapouge, ele vê a origem da ideia do ariano nórdico como um loiro dolicocéfalo. Eram tantas as preocupações de Lapouge quanto a ângulos faciais e proporções cranianas, que ele profetizou: “Eu estou convencido de que, no próximo século, milhões de homens estarão nos campos de batalha pela diferença de um ou dois graus no índice cefálico”. Evola cita Lapouge desapaixonadamente, mas o leitor fica com a forte impressão de que ele aponta no francês um dos mais claros e piores exemplos de racialismo materialista. Mais ambivalente é seu tratamento de outros antropólogos, como Ludwig Wilser, Friedrich Lange, Ludwig Woltmann e Heinrich Driesmans.

No quarto capítulo, é considerada a obra do nordicista pangermânico Houston Stewart Chamberlain. Evola é implacável nas críticas a Chamberlain, notando quanto ao livro Foundations of the Nineteenth Century [Os fundamentos do século XIX] que “O leitor fica meio perturbado com a falta de sistematicidade de Chamberlain, que divaga entre um assunto e outro, movimento que costuma ser a marca bem marcante do diletante”. E, novamente, se percebe o desagrado de Evola, desta vez diante do desprezo de Chamberlain para com os latinos, excluídos do conjunto das raças superiores, reservado apenas aos celtas, teutões e eslavos. Até mesmo a discussão de Chamberlain sobre a espiritualidade contém, segundo Evola, “violento sentimento anticatólico e antirromano”. Como se não bastasse, Chamberlain também emprega a palavra “latinização” para significar a “fusão caótica de povos”, irritando ainda mais o conde italiano que, desta vez, perde a paciência: “O racismo de Chamberlain apela aos mais banais e simplórios lugares-comuns encontradiços na interpretação não tradicional da história e no iluminismo liberaloide e profano”. Na conclusão do capítulo, Evola reserva dizeres mais amenos e nuançados para o maior discípulo de Chamberlain: Joseph Ludwig Reimer.

 

Os capítulos quinto e sexto abordam a teoria da hereditariedade e a tipologia das raças. No segundo destes tópicos, Evola fala quase exclusivamente da obra de Hans F. K. Günther, especialmente de sua taxionomia antropológica. A discussão, tão refletida e densa, não pode ser resumida sem injustiçar o conde. Basta dizer que Evola parece apreciar a classificação de Günther por não ter considerado apenas as diferenças físicas entre as raças, mas também aspectos psíquicos, psicológicos e outros quase espirituais.

No sétimo capítulo, “O mito do Ártico”, Evola passa em revista as teorias que tratam da origem polar da raça branca. Mais uma vez, de forma sutil, transparece a pouca paciência de Evola ao lidar com essa linha de pensamento. Ele vê, na hipótese do Ártico, o mesmo persistente e desarrazoado nordicismo já visto alhures.

No oitavo capítulo, “A concepção racista da história”, O mito do sangue volta-se para temas mais contemporâneos (principalmente o pensamento nacional-socialista) pelo restante do texto. Esta última quarta parte do livro é extremamente interessante. Em “A concepção racista da história”, Evola examina o estudo de Alfred Rosenberg. Fica evidente, desde o começo, a forte antipatia de Evola em relação a Rosenberg. Aliás, o próprio título do livro pode ser visto como uma resposta a O mito do século XX, título do livro de Rosenberg. O primeiro erro de Rosenberg é “ter extraído o seu princípio mais importante das teorias de Chamberlain”, e o seu segundo erro é exibir “uma ainda mais forte coloração anticatólica”. A não ser por esses pontos, Evola dá à história racial de Rosenberg o devido reconhecimento, apenas lamentando a sua “incompreensão dos valores estéticos e a depreciação deles ante os valores marciais”. A crítica seguinte de Evola, que a esta altura deve nos parecer familiar, recai sobre a discussão que faz Rosenberg sobre os povos do Mediterrâneo, especialmente os antigos etruscos. De acordo com Rosenberg, os etruscos eram um “povo misterioso e forâneo (levantino), cuja sombria e subversiva influência nunca se obliterou, realmente, apesar das incursões nórdicas”. Assim, pois, Rosenberg reconhece, na descrição do Inferno que faz Dante em A Divina Comédia, um exemplo das “medonhas representações do além-túmulo típicas dos etruscos […], de seus ritualismos supersticiosos, seu satanismo obsceno de tipo levantino”. Como amante da obra dantiana, especialmente de A divina comédia e da majestosamente cavalheiresca A vida nova, acabei concordando, mais ou menos, com o retrato que Evola faz de Rosenberg como profundamente ignorante de questões culturais que requeiram maior sensibilidade.

 

Dito isso, parece difícil evitar a sensação de que O mito do sangue arrisca-se a se confundir com uma apologia racial e filosófica dos não nórdicos. O que salva o texto, continuamente, de acusações nesse sentido é a persistente atitude de Evola com relação ao elitismo e a recorrência deste tema por todo o livro. A principal e, de certa perspectiva, a mais devastadora crítica de Evola contra Rosenberg e outros nacional-socialistas como ele é que a sua ideologia mantém forte sentido igualitário. Evola escreve:

 

A tradição do homem da raça norte-teutônica, de acordo com esses estudiosos, não teve continuação em Carlos Magno, mas sim na linhagem dos saxões pagãos erradicados por esse imperador e, depois, nos Príncipes da Reforma, insurgidos contra a autoridade imperial. Von Leers identifica na revolta antiaristocrática e comunitarista dos camponeses alemães “a última revolução nórdica do Medievo”, sufocada em sangue. E Rosenberg, da mesma forma, identifica nesse evento uma insurreição contra a servidão romana na tríplice forma dada pela Igreja, pelo Estado e pelo Direito, antevendo que essa revolta espiritual voltará a se acender no século XX para a vitória final. Ainda mais fortemente, essas ideias são defendidas por Walter Darré, cujo último trabalho sobre O campesinato como fonte de vida da raça nórdica obteve larga difusão e sucesso na Alemanha, o que gostaríamos da atribuir a causas extrínsecas… O tipo nórdico verdadeiro não é aquele do conquistador, mas aquele do camponês: um camponês armado (pasmem!), pronto para a autodefesa, mas ainda um camponês.

 

Evola fica abismado com o que diz um tratadista como Carl Dryssen, entre outros, para quem era necessário “reconhecer a tradição do socialismo agrícola como tradição teutônica, e daí reconhecer que a Alemanha está basicamente ligada ao Oriente, ao elemento eslavo-bolchevique, ao bolchevismo — um regime também nascido dos agricultores-soldados livres — e deve fazer causa comum contra o ‘Oeste’”. Francesco Germinario resume essas críticas de Evola como,

atacando o caráter grosseiro e plebeu do ‘racismo de sangue’ do nazismo. O nazismo, ele acreditava, definia a raça ariana muito amplamente e, ao mesmo tempo, muito estreitamente: fazendo a raça coextensiva a todo o Volk germânico, os nazistas ofereciam o nobre título de Ariano a qualquer zé-pregueté da comunidade nacional. Disso também decorreu o erro de situar a legitimidade no seio das massas e não nas mãos de seus chefes. Um retorno radical à tradição iria, ao contrário, requerer de fascistas e nazistas o completo abandono do nacionalismo populista em favor de um “imperialismo pagão”. Por outro lado, ao preconizar que os povos nórdicos do Noroeste da Europa eram os únicos arianos, os alemães excluíram, tolamente, outras elites raciais da Europa, com o que demonstraram a inadequação da ideologia nazista para servir de base para a Nova Ordem ou para um ressurrecto Sagrado Império Romano.(9)

 

Essas mesmas críticas reaparecem no décimo capítulo (“A concepção racista do direito”), no décimo primeiro capítulo (“A nova legislação racista”) e no décimo segundo capítulo (“O racismo de Adolf Hitler”). O conteúdo desses capítulos é interessante e merece atenta leitura, mas seu tratamento exaustivo ocuparia muito espaço. Além disso, dado o caráter central e subordinante de tais críticas, qualquer síntese delas arriscaria tornar repetitiva esta resenha de maneira tal que faria deste texto uma injustiça. Pelo restante da resenha eu irei, em razão disso, focar num capítulo do livro que deve ser, ao mesmo tempo, o mais interessante e o mais fora de lugar. Refiro-me ao nono capítulo de Evola — “Racismo e antissemitismo”.

 

Esse capítulo é o mais fora de lugar, porque Evola evita de apresentar um ponto de vista que ele depois critica ou questiona. Em vez disso, e imediatamente, ele coloca a Questão Judaica fora do pensamento racial normal e, então, destaca as especificidades dessa mesma questão que exigem  tal colocação. Evola tinha muita familiaridade com a Questão Judaica. Antes de escrever O mito do sangue, ele editara na Itália Os protocolos dos sábios de Sião. No capítulo “Racismo e antissemitismo”, ele argumenta contra a ideia de que os judeus constituam raça pura semelhante a um Ur-Volk, assegurando que, ao contrário, eles são “povo de origem híbrida” que se tornou biologicamente distinto. Ele admite que a mistura das raças remonta a tempos muito remotos, mas afirma que o povo que vemos hoje foi forjado pelo judaísmo em quamanha medida que acabou desenvolvendo “instintos e atitudes de um tipo especial, os quais se tornaram hereditários na passagem dos séculos”. Ele cita o judeu James Darmesteter como tendo escrito que “os judeus têm sido modelados, para não dizer inventados, pelos seus livros e seus ritos. Assim como Adão foi plasmado nas mãos de Jeová, assim ele [o judeu] foi plasmado nas mãos dos rabinos”. Essas referências, claro, condizem muito bem com a exposição de Kevin MacDonald sobre a função quase biológica do judaísmo em seu A People That Shall Dwell Alone [Um povo que habitará só].

 

De acordo com Evola, o judaísmo não tomou a forma atual no tempo de Cristo, mas sim em período posterior — na época do Talmude. Foi durante esta época que “formulações da Lei judaica reforçaram ainda mais e distinguiram o modo de ser judeu e seu instinto, sobretudo no que respeita à sua relação com os não judeus”. Evola concorda com René Guénon quanto a serem os  judeus que abandonaram a Lei judaica ainda mais perigosos do que os seguidores dela, pois “aquele que não tem raça se volta contra as raças; aquele que não tem nação se volta contra as nações”. Ele também aprova a visão de Heinrich Wolf, que vê o elemento judeu como,

estranho, furtivo, um apátrida em cada pátria… o próprio princípio antirracial, antitradicional, anticultural: não a antítese de determinada cultura, mas de toda cultura, se racial ou nacionalmente determinada… com o espírito dos nômades, dos povos desertícolas sem ligação com nenhuma pátria, os judeus infundiram em vários povos — a começar do romano — o vírus da desnaturalização ou universalismo, do internacionalismo da cultura. Sua ação consiste na corrosão incessante do que quer que seja diferenciado, qualitativo, ligado ao sangue e à tradição.

 

A discussão de Evola sobre a noção dos judeus de que agem como “a luz das nações” é excepcional e de valor inestimável, dizendo respeito ao que Evola refere como o autoconceito judeu de ser o “homem da salvação”. Ela merece ser lida e assimilada completamente, mas basta  dizer aqui que a ação do “homem da salvação” redunda na “contaminação e degradação de todo valor mais alto”. Similarmente, Evola vê, na crença dos judeus como sendo o “Povo Eleito” predestinado à dominação de outros povos, a manifestação de “um profundo e desenfreado ódio a todo não judeu”, que se efetiva num círculo vicioso [de profecia autorrealizável]”. A seguir, Evola cita passagens antigentílicas do Talmude que confirmam as suas preocupações.

Evola insiste em que, desses problemas, embora radicados profundamente na história e nos primeiros escritos do Talmude, nenhum está hoje resolvido: “Aqueles preceitos afetaram, durante séculos, a formação do judeu no âmago do seu caráter: eles deixaram marcas indeléveis”. Evola apresenta o que, na verdade, pode ser uma primitiva versão, datada da década de 1930, da teoria  da estratégia evolucionária de grupo, que depois consagraria Kevin MacDonald. Em vez de falar, estritamente, de genes e traços, Evola menciona um “complexo de instintos” que apenas foi laicizado e se tornou funcional na modernidade. Ele argumenta que esses instintos são, basicamente, revolucionários, “podendo atuar por si mesmos, sem nenhuma dada condição externa, como o fermento de agitação e subversão permanentes”. Evola argumenta contra algumas cogitações antijudaicas do seu tempo envolvendo certas teorias conspiratórias. Em vez disso, ele aventa o parecer de que, dadas as reiteradas situações de persistente participação judaica em atividades subversivas, “não estamos lidando com nenhuma intenção particular ou plano, mas com instintos, com um modo de ser que se manifesta natural e espontaneamente”. “Misturam-se o instinto e a inspiração em convergência. Não se pode dizer que os judeus sejam culpados: os judeus não podem agir senão assim, como o ácido não pode senão corroer. É o ser deles, determinação atávica das suso citadas causas raciais”. O mesmo é dizer “estratégia evolucionária de grupo”, expressão de Kevin MacDonald, parafrasticamente.

Esse nono capítulo termina com uma discussão sobre Os protocolos, mas toda a sua segunda metade, antes disso, está repleta de percepções e comentários dignos de referência. Uma citação de Theodor Fritsch clama por ser incluída aqui: “A comunidade judia tem menos características de  religião do que de conspiração”. Evola entrega até mesmo uma espécie de versão primitiva em ponto menor da Culture of critique (trilogia de Kevin MacDonald), ao esclarecer o sentido maior e subjacente nos trabalhos de Freud, Adler, Claudio Lombroso (criminologista judeu), Nordau, Wasserman, Hirschfeld e Durkheim, observando que,

 

esses são exemplos frisantes, que poderiam ser multiplicados, de ações com mil faces, mas com um só efeito: desintegrar, degradar, subverter. Isso se chama Schadenfreude [chadenfroide ou maletícia em português (n. do trad.)] ou seja, a alegria obtida da desmoralização, da espoliação, da sensualização, da libertinagem, da abertura das portas dos repartimentos “subterrâneos” da alma humana, desliando os seus laços para saciá-la — eis o atributo da Schadenfreude que marca a alma judeo-levantina, a alma do “homem da salvação”.

 

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O mito do sangue é um livro notável sob muitos aspectos — como documento histórico; como contrapeso do moderno e científico pensamento racialista; como exemplo de um radical pensamento anti-igualitarista; como contribuição para discussão da Questão Judaica; como resposta influente e importante dada às visões nordicistas mais rígidas da civilização europeia (do passado, do presente e do futuro); e mesmo como relevante desenvolvimento na obra de Evola. Eu posso dizer com alguma certeza que ninguém concordará com tudo o que Evola tem a dizer no texto, mas eu posso afirmar, por outro lado e da mesma forma, que ninguém precisará se esforçar muito para encontrar nele grandes valores. O livro desafia e provoca, escarnece e cativa, norteia e edifica. Eu fiquei meio frustrado com o conde Evola, que também me deixou perplexo, mas com ele eu aprendi profundas lições. Agora, como no distante 1936, ele não admite ser ignorado.

 

(1) HUNT, Marcus. Review: social and political thought of Julius Evola by Paul Furlong. Political Studies Review, v. 13, p. 239-316, 247. 2015.

(2) SHEEHAN. Thomas. Myth and violence: the fascism of Julius Evola and Alain de Benoist.  Social Research, v. 48, n. 1, p. 45-73. 1981.

(3) WOLFF, Elisabetta Cassina. Apolitìa and tradition in Julius Evola as reaction to nihilism. European Review, v. 22, n. 2, 2014), 258- 273; maio, 2014. Cf. também “Evola’s interpretation of fascism and moral responsibility,” Patterns of Prejudice, 50:4-5, 478-494.

(4) FRANÇOIS, Stéphane. The nouvelle droite and “Tradition”. Journal for the Study of Radicalism, v. 8, n. 1, p. 87-106, 2014. .

(5) FERRARESI, Franco. Julius Evola: tradition, reaction, and the Radical Right. European Journal of Sociology, v. 28, n. 1, p. 107-151, 1987.

(6) NAPOLI, Olindo de. The origin of the racist laws under fascism; a problem of historiography.  Journal of Modern Italian Studies, v. 17, n. 1, p. 106-122, 2012.

(7) WOLFF, Elisabeta Cassina. Evola’s interpretation of fascism and moral responsibility. Patterns of Prejudice. p. 483.

(8) Embora Evola não a tenha mencionado, eu fui levado a me lembrar da passagem dos Edas em que um deus nórdico (para alguns estudiosos era Ódin, para outros, Heimdall) vem ao mundo e procria, gerando três tipos humanos imutavelmente diversos em aparência, espírito e capacidade.

(9) MARTIN, Benjamin. Review: Francesco Germinario: Razza del sangue, razza dello spirito; Julius Evola, l’antisemitismo e il nazionalsocialismo (193043), Modern Italy, v. 9, n.1, p. 124-125, 2004.

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Fonte: The Occidental Observer. Autor: Andrew Joyce. Título Original: Review: Julius Evola’s “The Myth of the Blood: The Genesis of Racialism”. Data de publicação: 18 de setembro de 2018. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.

 

A Reconquista: germanos contra berberes

By José António Primo de Rivera

Na prisão de Alicante, três meses antes de ser assassinado, José António escreve um dos textos literariamente mais belos e historicamente mais profundos sobre a base etnocultural da Espanha. Intitula-se “Germanos contra berberes” e parece ter sido escrito ainda ontem. Confira:

O que foi a Reconquista? Um conceito superficial da História tende a considerar a Espanha como uma espécie de cenário ou passarela permanente por onde desfilam invasores que nos são apresentados no pressuposto de que devamos emprestar a nossa solidariedade ao elemento aborígine. Dominação fenícia, cartaginesa, romana, goda, africana… Desde a nossa infância temos presenciado mentalmente todas essas conquistas como sujeitos pacientes; isto é, enquanto membros do povo invadido. Nenhum de nós, em sua infância romanesca, deixou de se sentir como o sucessor de Viriato, de Sertório, dos numantinos [sorianos]. O invasor era sempre nosso inimigo; o invadido, sempre nosso compatriota.

Considerado tudo, depois, e com mais vagar, já no despontar da maturidade, caíamos num estado de perplexidade: afinal — perguntávamos — a nossa cultura e, mais do que isso, o nosso sangue, as nossas entranhas têm mais em comum com o celtibero aborígine do que com o romano civilizado? Ou seja, não teríamos o perfeito direito, ainda que por foro de sangue, de ver a terra espanhola com olhos de invasor romano, de considerar com orgulho esta terra não como remoto berço de nossos antepassados, mas como solo incorporado pelos nossos a uma nova forma de cultura e de existência? Quem pode dizer que haja mais sangue nosso, mais valores de nossa cultura no interior das muralhas de Numância do que nos acampamentos dos sitiadores?

Talvez possamos, aqueles de nós que procedemos de famílias que viram nascer muitas de suas gerações na América hispânica, compreender melhor tudo isso. Nossos antepassados transatlânticos sentiram-se americanos, assim como se sentem americanos os nossos atuais parentes de lá, da mesma forma como nós nos sentimos espanhóis; eles sabem, porém, que sua qualidade de americanos lhes é dada por sua condição de descendentes daqueles que deram à América a sua forma presente. Sentem a América como entranhadamente sua, porque seus antepassados a ganharam. Aqueles antepassados procediam de outro solar, que já é, para esses seus descendentes, mais ou menos estrangeiro. Em contrapartida, a terra onde vivem atualmente, séculos atrás estrangeira, é agora sua, incorporada como foi, e de forma definitiva, por alguns remotos avós, ao destino vital de sua estirpe.

Esses dois pontos de vista baseiam-se nas duas maneiras de entender a pátria: pela razão da terra ou pela razão do destino. Para alguns, a pátria é o assento físico do berço; toda tradição é uma tradição espacial, geográfica. Para outros, a pátria é a tradição física de um destino; a tradição, assim entendida, é predominantemente temporal, histórica.

Depois dessa prévia delimitação de conceitos, cabe voltar à questão inicial: o que foi a Reconquista? Já se sabe: de um ponto de vista infantil, tratou-se da lenta retomada da terra espanhola pelos espanhóis na luta contra os mouros que a haviam invadido. Mas a coisa não foi bem assim. Em primeiro lugar, os mouros (é mais exato chamá-los de “mouros” do que de “árabes”; a maior parte dos invasores procedia do Norte da África, eram berberes; os árabes, raça muito superior, formavam somente a minoria dirigente) ocuparam a quase totalidade da península em pouco tempo, mas o suficiente para a tomada da posse material, sem luta. Desde Guadalete (ano 711) até Covadonga (718), a História não fala de nenhuma batalha entre os forasteiros e os indígenas. Até o reino de Teodomiro, na Múrcia, resultou de mancomunagem com os mouros. Toda a imensa Espanha foi ocupada em paz. A Espanha e, naturalmente, os espanhóis que a habitavam. Aqueles que retrocederam para as Astúrias eram os remanescentes dos dignitários e militares godos; ou seja, eram os que, três séculos antes, haviam sido, por sua vez, considerados os invasores. O grosso da população indígena (celtibérica, semítica em grande parte, norte-africana por afinidade, toda essa massa mais ou menos romanizada) era tão alheia aos godos como aos agarenos recém-chegados. E mais: sentia muito mais razões de simpatia étnica e consuetudinária com os vizinhos do outro lado do estreito do que com os loiros danubianos aparecidos três séculos antes. É provável que a população espanhola se sentisse mais à vontade governada pelos mouros do que dominada pelos germanos. Isso no começo da Reconquista; no final, nem é preciso falar. Depois de 600, de 700, de quase (em algumas regiões) 800 anos de convivência, a fusão de sangue e costumes entre os aborígenes e os berberes era indestrutível; a interpenetração entre indígenas e godos, ao contrário, entorpecida durante 200 anos pelo dualismo jurídico e, no fundo, recusada sempre pela sensibilidade racial dos germânicos, não deixou nunca de ser superficial.

A Reconquista não é, pois, uma empresa popular espanhola contra uma invasão estrangeira; é, na realidade, uma nova conquista germânica; uma pugna multissecular pelo poder militar e político entre a minoria semítica de uma grande raça — os árabes — e a minoria ariana de outra grande raça — os godos. Nessa pugna tomam parte os berberes e os aborígines, às vezes como componentes da tropa e, às vezes, como súditos resignados de um ou outro dos dominadores, talvez com marcada preferência, ao menos em grande parte do território, pelos sarracenos.

A Reconquista foi uma guerra entre partidos e não uma guerra de independência, tanto que ninguém nunca chamou de “os espanhóis” os que combatiam contra os agarenos, mas sim de “os cristãos”, por oposição a “os mouros”. A Reconquista foi uma disputa bélica pelo poder político e militar entre dois povos dominadores, polarizada em torno de uma pugna religiosa.

Do lado cristão, os chefes proeminentes são todos de sangue godo. Pelágio foi carregado sobre um pavês em Covadonga como o continuador da Monarquia sepultada às margens do Guadalete. Os capitães dos primeiros núcleos cristãos têm o ar inequívoco de príncipes de sangue e mentalidade germânicos. Mais: sentem-se ligados desde o princípio à grande comunidade católico-germânica europeia. Quando Afonso o Sábio aspira ao trono imperial, não adota nenhuma atitude extravagante: pleiteia, com a alegação da maturidade política de seu reino, o que se alentava desde séculos antes na consciência de príncipe cristogermânico de cada chefe dos Estados reconquistadores. A Reconquista é empresa europeia — ou seja, germânica, naquele contexto. Muitas vezes, acorrem para guerrear contra os mouros senhores livres da França e da Alemanha. Os reinos que se formam têm uma base germânica inegável. Talvez não haja na Europa Estados mais fortemente marcados com o selo europeu da germanidade do que o condado de Barcelona e o reino de Leão.

Em síntese — abstração feita dos aportes e influências recíprocas de todos os elementos étnicos na interação de oitocentos anos — a Monarquia triunfante dos Reis Católicos é a restauração da Monarquia gótico-espanhola, católico-europeia, destronada no século VIII. A mentalidade popular de então dificilmente distinguia entre a nação e o rei. Além disso, consideráveis extensões da Espanha, particularmente as Astúrias, Leão e o Norte de Castela, haviam sido germanizadas, quase sem solução de continuidade, durante mil anos (desde princípios do século V até fim do século XV, sem outra interrupção que a dos anos entre Guadalete e a recuperação das terras do Norte pelos chefes godo-cristãos) e ainda sua afinidade étnica com o Norte da África era muito menor do que a das gentes do Sul e do Levante. A unidade nacional sob os Reis Católicos é, pois, a edificação do Estado unitário espanhol de sentido europeu, católico, germânico, de toda a Reconquista. E a culminação da obra de germanização social e econômica da Espanha, o que não deve ser esquecido, porque talvez aí a constante berbere terá encontrado a oportunidade de sua primeira rebelião.

Com efeito, o tipo de dominação árabe era predominantemente político e militar. Os árabes tinham fraco sentido de territorialidade. Não se adonavam das terras, num sentido jurídico privado. Assim, pois, a população camponesa das comarcas mais largamente dominadas pelos árabes (a Andaluzia, o Levante) permanecia numa situação de livre gozo da terra, na forma da pequena propriedade e, eventualmente, de propriedades coletivas. O andaluz aborígine, semiberbere, e a população berbere que formou mais copiosamente nas fileiras árabes gozavam de uma paz elemental e livre, inepta para grandes empresas de cultura, mas deliciosa para um povo indolente, imaginativo e melancólico como o andaluz. Os cristãos, germânicos, ao contrário, traziam no sangue o sentido feudal da propriedade. Quando conquistavam as terras, estabeleciam nelas senhorios, não puramente político-militares como os dos árabes, mas patrimoniais ao mesmo tempo que políticos. O camponês passava, no melhor dos casos, a ser vassalo; tempos depois, quando pela atenuação do aspecto jurisdicional, político, os senhorios tiveram fortalecido o seu caráter patrimonial, os vassalos, completamente desarraigados, caem na condição terrível de jornaleiros.

A organização germânica, de tipo aristocrático, hierárquico, era, na sua base, muito mais dura. Para justificar tal dureza, se comprometia a realizar alguma grande tarefa histórica. Era, na realidade, a dominação política e econômica sobre um povo quase primitivo. Toda aquela enorme armadura: a Monarquia, a Igreja, a aristocracia, podia intentar a justificação de seus pesados privilégios a título de cumpridora de grande destino na História. E isso foi tentado por duplo caminho: a conquista da América e a Contrarreforma.

É um tópico (posto em circulação pela literatura berbérica de que se falará mais tarde) o dizer que a conquista de América é obra da espontaneidade popular espanhola, realizada quase a despeito da Espanha oficial. Não se pode levar essa tese a sério. Muitas das expedições foram organizadas, certamente, como empresa privada; mas o sentido da cristianização e colonização da América está contido no monumento das Leis das Índias, obra que encerra um pensamento constante do Estado espanhol ao longo de vicissitudes seculares. E a conquista da América é também uma tese católico-germânica. Tem um sentido de universalidade sem a menor raiz celtibérica e berbérica. Só Roma e a Cristandade germânica puderam transmitir à Espanha a vocação expansiva, católica, da conquista da América. O que se chama de o espírito aventureiro espanhol será mesmo espanhol no sentido de aborígine ou berbere, ou será uma das marcas do sangue germânico? Não deve ser desprezado o dado de que, ainda em nossos dias, as regiões de onde sai o maior número de emigrantes, ou seja, de aventureiros, são as do Norte, as mais germanizadas, as mais europeias, as que, de um ponto de vista castiço e pitoresco, podem ser chamadas de as menos espanholas. Em contrapartida, é abundantíssimo o número de andaluzes e levantinos que se transplantam a Marrocos, a Orã, à Argélia e que ali vivem tão à vontade como se estivessem em sua casa, como cepa que reconhece a terra distante de onde partiram os seus ancestrais. Esta derivação meridional e levantina para a África não guarda a menor semelhança com as expedições colonizadoras para a América. Aliás, África e América têm sido, desde há muito, as palavras de ordem de dois partidos políticos e literários espanhóis. De dois partidos que coincidem exatamente em quase todos os momentos com o liberal e o conservador; o popular e o aristocrático; o berbere e o germânico. Era coisa quase obrigatória que um escritor antiaristocrático, antieclesiástico, antimonárquico incorporasse no seu repertório frases como “Teria sido melhor se a Monarquia espanhola, em vez de esgotar a Espanha na empresa da América, tivesse buscado nossa área de expansão natural, que é a África”.

Ao lado da conquista da América, a Espanha germânica (duplamente germânica, agora, sob a dinastia dos Ausburgos) trava na Europa o combate católico pela unidade. Trava esse combate e, em longo prazo, perde. E, por causa disso, perde a América. A legitimação moral e histórica da dominação sobre a América estava na ideia da unidade religiosa do mundo. O catolicismo era a justificação do poder da Espanha. O catolicismo, porém, havia perdido a disputa. Vencido o catolicismo, a Espanha restava sem título no qual embasar o império do Ocidente. Sua credencial havia caducado. O astuto Richelieu percebeu isso e, para derrubar a casa da Áustria, não hesitou em ajudar os paladinos da Reforma. Sabia muito bem que a pedra angular dos Ausburgos era a unidade católica da Cristandade.

E assim, batida no embate, primeiro na Europa, depois na América, que tarefa de valor universal alegaria a Espanha dominadora — Monarquia, Igreja, aristocracia — para conservar sua situação de privilégio? Na falta de justificação histórica, na demissão de toda função diretiva, suas vantagens econômicas e políticas restavam como puro abuso. Acresce que, na privação de empregos, as classes dirigentes haviam perdido o brio, até para a sua própria defesa. Pode ser observada uma série de fenômenos muito semelhantes na decadência da monarquia visigótica. E a força latente, nunca acabada, do povo berbere submetido, inicia abertamente a sua vingança.

Porque, mesmo nas horas zenitais da dominação, a “constante berbere” não havia nunca deixado de existir e de operar. Os povos superpostos, dominador e dominado, germânico e aborígine berbere, não se haviam mesclado. Nem sequer se entendiam. O povo dominador mantinha-se alerta contra a mestização com o dominado (até 1756, não se derroga a pragmática de Isabel a Católica que exigia prova de pureza de sangue, isto é, a condição de cristão velho, sem mescla de judeu ou mouro, mesmo que para o exercício de modestíssimas funções de autoridade). O povo dominado, entrementes, seguia detestando o dominador. Numa postura bem típica em relação aos dominadores, adota uma aparência de irônica submissão. Na Andaluzia, chega-se aos mais exagerados extremos da adulação; debaixo, porém, dessa adulação aparente se esconde o mais desdenhoso escárnio para com o adulado. Esta atitude de burla é a mais docemente resignada que adota o povo despossuído. Mais acima, já aparece o ódio e, sobretudo, a afirmação permanente da separação. Na Espanha, a expressão “o povo” conserva sempre um tom particularista e hostil. O “povo hebreu” compreendia, naturalmente, os profetas. O “povo inglês” inclui os lordes; pareceria fora de propósito a um inglês comum que pela denominação popular de inglês não fosse ele incluído na categoria dos maiores governantes do país! Aqui não: quando se diz “o povo” é para significar o indiferenciado, o inqualificável; o que não é aristocracia, nem igreja, nem milícia, nem hierarquia de nenhuma espécie. O próprio D. Manuel Azaña disse: “Não creio nos intelectuais, nem nos militares, nem nos políticos; não acredito senão no povo”. Mas, então, os intelectuais, os militares, os políticos, assim como os eclesiásticos e os aristocratas, não formam parte do povo? Na Espanha, não, porque há dois povos e, quando se fala de “o povo”, sem especificar, se faz referência àquele subjugado, àquele subtraído à sua sempre saudosa existência primitiva, indiferenciada, anti-hierárquica e ele, por isso mesmo, detesta rancorosamente toda hierarquia, característica do povo dominador.

Tal dualidade penetrou todas as manifestações da vida espanhola, as de aparência menos popular, inclusive. Por exemplo, o fenômeno europeu da Reforma teve na Espanha uma versão reduzida, mas totalmente impregnada da pugna entre germânicos e berberes, entre dominadores e dominados. Na Espanha, não se deu nenhum caso de um príncipe herege, como na França ou na Alemanha. Os grandes senhores se mantiveram aferrados à sua religião de casta. Todo herege, pequeno-burguês ou letrado, era como um vingador dos oprimidos. Na sua dissidência alentava, mais do que um tema teológico, uma incurável animadversão contra o aparato oficial, formidável: monarquia, Igreja, aristocracia…

E assim até datas mais recentes. A orientação berbérica, sempre mais aparente, conforme vê declinar a força contrária, assoma em toda a intelectualidade de esquerda, de Larra até aqui. Nem a fidelidade a modas estrangeiras logra ocultar um tom de ressentimento de derrotados em toda a produção literária espanhola dos últimos cem anos. Em qualquer escritor de esquerda há um gosto mórbido, tão persistente e tão molesto que não se pode alimentar senão de uma animosidade pessoal, de casta humilhada. A Monarquia, a Igreja, a aristocracia, a milícia deixam nervosos os intelectuais de esquerda, de uma esquerda que começa bastante à direita para esses efeitos. Não é que submetam essas instituições à crítica; é que, na presença delas, eles são acometidos de um desassossego ancestral, como a aflição que acomete os ciganos quando alguém dá o nome da bicha. No fundo, os dois efeitos são manifestações do mesmo velho chamamento do sangue berberesco. O que odeiam, sem o saber, não é o fracasso das instituições que denigrem, mas seu remoto triunfo; seu triunfo sobre eles, sobre os que as odeiam.  São os berberes derrotados que não perdoam os vitoriosos — católicos, germânicos — por terem sido os portadores da mensagem da Europa.

 

O ressentimento esterilizou toda possibilidade de cultura na Espanha. As classes diretoras não deram nada à cultura, o que não costuma ser sua missão específica em nenhuma parte. As classes subalternas, para produzir algo considerável do ponto de vista da cultura, teriam que ter aceito o quadro de valores europeu, germânico, que é o vigente; e isso lhes causava uma repugnância infinita por ser, no fundo, aquele dos dominadores.

Assim, grosso modo, pode-se dizer que a contribuição da Espanha à cultura moderna é igual a zero. Salvo algum ingente esforço individual, desligado de toda escola, e algum pequeno cenáculo inevitavelmente envolto num halo de estrangeirice.

Depois das escaramuças, teria de chegar a batalha. E chegou: é a República de 1931; será, sobretudo, a República de 1936. Estas datas, principalmente a segunda, representam a demolição de todo o aparato monárquico, religioso, aristocrático e militar que ainda afirmava, mesmo em ruínas, a europeidade da Espanha. A máquina estava inoperante, logicamente; mas o grave é que sua destruição representa a vingança da Reconquista, ou seja, a nova invasão berbere. Estaremos de volta ao indiferenciado. Provavelmente se ganhará em placidez elemental nas condições populares de vida. Talvez o campino andaluz, infinitamente triste e nostálgico, recomece o silencioso colóquio com a terra de que foi desapossado. Quase a metade da Espanha sentir-se-á contemplada da melhor forma possível se isso acontecer. Ter-se-á conseguido operar perfeito ajuste na ordem natural. O mal é que, então, haverá um povo único, o dominador e o dominado num só elemento, povo sem a mínima aptidão para a cultura universal. Tiveram-na os árabes; mas os árabes eram pequena casta diretora, já mil vezes diluída no fundo humano sobrevivente. A massa, que é a que vai triunfar agora, não é árabe, mas berbere. Aqueles suplantados serão os germanos que ainda nos ligavam com a Europa.

Talvez a Espanha se parta em pedaços, ao longo de linhas que estabeleçam, dentro da península Ibérica, os verdadeiros limites da África. Toda a Espanha acabe africanizada, talvez. Mas o certo é que, por muito tempo, a Espanha deixará de contar na Europa. E então, aqueles que pela solidariedade de cultura e ainda pela misteriosa voz do sangue nos sentimos ligados ao destino europeu, poderemos demudar o nosso patriotismo de estirpe, que ama esta terra porque nossos antepassados a ganharam e enformaram, num patriotismo telúrico, que ame esta terra por ser esta terra, mesmo que na sua larga ela tenha emudecido até o último eco do nosso destino familiar?

José António Primo de Rivera
Prisão de Alicante, 13 de agosto de 1936

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Fonte: El Manifiesto. Autor: José António Primo de Rivera. Título original: Germanos contra bereberes. Data de publicação: 18 de janeiro de 2023. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.