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Alexander Dugin: Ucrânia—uma guerra entre dois mundos

Uma guerra entre dois mundos ou duas civilizações, no dizer de Alexander Dugin, numa análise profundíssima do conflito e seus desafios, como também dos riscos de aniquilação atômica.

Já se passou um ano desde o começo da Operação Militar Especial. Embora iniciada com essa denominação oficial, agora está claro que a Rússia se defronta com uma guerra difícil, que vai deixando de ser limitada. Não apenas contra a Ucrânia, enquanto regime, não como povo (daí a exigência de desnazificação política pleiteada inicialmente), mas também contra o “Ocidente coletivo”, ou seja, o bloco da Otan, basicamente (excetuada a posição especial da Turquia e da Hungria, que pretendem se manter neutras no conflito; os demais países da Otan participam da guerra ao lado da Ucrânia de um modo ou de outro).

Qual foi o erro do Ocidente?

O Ocidente, que acreditava na eficácia da avalanche de sanções contra a Rússia e na possibilidade de romper quase totalmente as suas ligações com a economia, a política e a diplomacia mundiais, controladas pelos Estados Unidos e seus aliados, não conseguiu alcançar esse objetivo. A economia russa manteve-se sólida, não tem havido protestos internos, a posição de Putin não se tornou vulnerável mas, ao contrário, ficou ainda mais forte. Não foi possível coagir a Rússia para fazê-la sustar as suas ações militares ou anular as decisões de incorporar novas entidades. Tampouco houve revoltas de oligarcas cujos bens tinham sido confiscados no Ocidente. A Rússia sobreviveu, contrariamente à firme convicção do Ocidente de que ela iria cair.

Desde o começo do conflito, a Rússia, ao se dar conta de que as relações com o Ocidente desmoronavam, voltou-se rapidamente para os países não ocidentais — sobretudo a China, o Irã, os países islâmicos, mas também a Índia, a América Latina e a África — declarando clara e enfaticamente sua determinação de construir um mundo multipolar. Em parte, a Rússia, enquanto tratava de reforçar a sua soberania, já seguia nesse sentido, mas de forma ainda vacilante, ainda incoerente, voltando sempre a buscar a sua integração no Ocidente global. Agora essa ilusão já se desfez, finalmente, e Moscou não tem outro remédio senão se lançar de cabeça na construção de uma ordem mundial multipolar. Isto já deu alguns resultados, mas estamos ainda no começo do caminho.

Os planos da Rússia mudaram radicalmente

Entretanto, as coisas não se passaram conforme desejava a Rússia. Aparentemente, o plano era golpear rápida e mortalmente a Ucrânia, sitiar Kieve e forçar a capitulação do regime de Zelensky. Não se esperava que o Dombás e, depois, a própria Crimeia fossem atacados, ataque que o Ocidente preparara, sob a falsa aparência formal dos acordos de Minske, manobra ardilosa que contou com o apoio das elites globalistas: Soros, Nuland, o próprio Biden, seu gabinete et caterva. Até então, o plano consistia em levar ao poder um político moderado (por exemplo, Medvedchuk) e começar a restabelecer as relações com o Ocidente (como após a reintegração da Crimeia). Não estava prevista nenhuma reforma econômica, ou política ou social significativa. Tudo deveria seguir como antes.

A história não quis que fosse assim, porém. Depois dos primeiros êxitos reais, tornaram-se evidentes alguns erros de cálculo na planificação estratégica de toda a Operação. Os militares, a elite e a sociedade não estavam preparados para uma confrontação séria, nem com o regime ucraniano nem, muito menos, com o Ocidente coletivo. A ofensiva estancou ante a desesperada e feroz resistência do oponente, que contava com o apoio da maquinaria militar otaniana numa dimensão nunca antes vista. Provavelmente, o Kremlin não teve em conta nem a disposição psicológica dos nazistas ucranianos a lutar até o último ucraniano, nem a grandeza da intervenção militar ocidental.

Além disso, não tivemos em conta os efeitos da intensa propaganda, dia a dia, durante oito anos, que inculcou, fortemente, a russofobia e o nacionalismo histéricos em toda a sociedade ucraniana.  Em 2014, a grande maioria do Leste da Ucrânia (Novirrússia) e a metade da população do Centro do país tinham disposição positiva em relação à Rússia, embora não tanto quanto os habitantes da Crimeia e do Dombás. Essa situação mudou em 2022. O ódio aos russos, agora, aumentou bastante, e as simpatias são reprimidas violentamente, não raro de forma direta, na base da pancadaria, da tortura. Em todo caso, os partidários ativos de Moscou na Ucrânia tornaram-se passivos e intimidados, enquanto os indecisos bandearam-se para o neonazismo ucraniano, estimulado de todas as formas possíveis pelo Ocidente (mirando fins puramente pragmáticos e geopolíticos).

A Ucrânia estava preparada

A Ucrânia estava mais preparada do que ninguém para as ações da Rússia, das quais já falava em 2014, quando Moscou não tinha nem a mais remota intenção de ampliar o conflito e quando a reunificação com a Crimeia parecia suficiente. Se algo surpreendeu o regime de Kieve foram precisamente os fracassos militares russos em seguida aos êxitos do começo. Isto elevou, enormemente, o moral da sociedade ucraniana, já impregnada de russofobia desenfreada e de nacionalismo exaltado. Chegou um momento que a Ucrânia resolver lutar para valer contra a Rússia até as últimas consequências. Kieve, dado o enorme patrocínio do Ocidente, acreditava na vitória, o que pesou muito como fator positivo na psicologia ucraniana.

O que colheu o regime de Kieve de surpresa foi apenas o ataque preventivo de Moscou, cuja preparação muitos interpretaram como blefe. Kieve planejou atacar o Dombás e se preparava para isso, segura de que Moscou não atacaria primeiro. De qualquer forma, o regime de Kieve também se preparou para repelir algum eventual ataque, que não estava fora de cogitação (ninguém se iludia a esse respeito). Durante oito anos, ininterruptamente, foram realizados trabalhos de reforço de várias linhas de defesa no Dombás, onde ocorreriam as principais batalhas, conforme se esperava. Os instrutores da Otan formaram unidades coesas e dispostas ao combate, saturando-as com meios técnicos dos mais avançados. O Ocidente não vacilou em aplaudir a criação de batalhões punitivos constituídos de neonazistas para tocar o terror massivo e direto contra a população civil do Dombás. E ali, justamente, foi mais difícil o avanço russo. A Ucrânia estava preparada para a guerra exatamente porque se dispunha a disparar primeiro a qualquer hora.

Moscou, por sua vez, manteve tudo em segredo até o último momento. A discrição fez que a opinião pública não estivesse de todo preparada para os acontecimentos desencadeados a partir do dia 24 de fevereiro de 2022.

A elite liberal russa é refém da Operação Militar Especial

A maior surpresa, porém, foi a da elite liberal pró-ocidental russa com o início da Operação Militar Especial. Essa elite estava, individual e quase institucionalmente, integrada ao mundo ocidental de forma profunda. A maioria conservava suas reservas de numerário (gigantescas, às vezes) no Ocidente e participava ativamente do mercado acionário e de outros negócios financeiros. A Operação Militar Especial colocou essa elite numa condição de risco de ruína total. E, na própria Rússia, muitos percebiam essa prática como uma traição aos interesses nacionais. Por isso, os liberais russos não acreditaram, até o último momento, que a Operação fosse começar e, quando começou, começaram a contar os dias do prazo para o seu final. Transformando-se numa guerra ampla e prolongada de resultado incerto, a Operação acabou sendo um desastre para todo esse segmento liberal da classe dirigente.

Existem aqueles da elite que ainda tentam, desesperadamente, deter a guerra (não lhes importa como), algo a que não estão dispostos nem Putin, nem as massas, nem Kieve, nem sequer o Ocidente. Os ocidentais se deram conta da debilidade da Rússia no conflito, e seguirão até o fim no intento de desestabilizar o Estado russo.

Aliados volúveis e solidão russa

Creio que os amigos da Rússia se sentiram, também, um pouco decepcionados com o primeiro ano da Operação Militar Especial. Muitos terão, provavelmente, pensado que suas capacidades militares eram tantas e tamanhas, e tão consolidadas, que o conflito com a Ucrânia seria questão a ser resolvida com rapidez e relativa facilidade. A transição ao mundo multipolar parecia já irreversível e natural para muitos, mas os problemas que se deparam à Rússia conduzem todos a uma situação de mais conflito e mais sangue.

Nesse contexto, as elites liberais ocidentais arrojaram-se, severa e desesperadamente, na luta para salvar a sua hegemonia unipolar, afrontando até mesmo o risco de uma guerra de grande escala com a participação direta da Otan, mesmo em se tratando de um conflito nuclear pleno. A China, a Índia, a Turquia e outros países islâmicos, assim como os Estados africanos e outros da América Latina estavam mal preparados para essa nova situação. Uma coisa é aproximar-se da Rússia na paz, reforçando implicitamente a sua soberania e construindo estruturas regionais e inter-regionais não ocidentais (mas tampouco antiocidentais!). Outra coisa é entrar numa guerra contra o Ocidente. Assim, embora tendo o apoio tácito dos partidários da multipolaridade (sobretudo as políticas amistosas da China, a solidariedade do Irã e a neutralidade da Índia e da Turquia), o dado essencial é que a Rússia está sozinha no combate contra o Ocidente.

Primeira fase: um começo rápido e vitorioso

O primeiro ano desta guerra teve várias fases. Em cada uma delas, as coisas mudaram muito na Rússia, na Ucrânia e na comunidade mundial.

A primeira fase dramática dos êxitos russos, na qual as tropas russas tomaram Sumy e Chemigove, chegando à Kieve pelo norte, foi recebida com fúria no Ocidente. A Rússia demonstrou seriedade na liberação do Dombás e, partindo da Crimeia, assumiu o controle de outras regiões, Kérson e Zaporísia, assim como parte da região de Karquive, Mariupol — uma cidade de importância estratégica da República Popular do Dombás, foi tomada a duras penas. Em geral, a Rússia, operando rápido como um raio para surpreender o oponente, logrou êxitos no princípio da Operação. Não obstante, ainda não conhecemos, exatamente, os erros cometidos nesta fase que foram a causa dos fracassos posteriores. Esta é uma questão ainda a ser investigada. Mas o certo é que erros foram cometidos.

Com sucessos visíveis e tangíveis, Moscou estava disposta a entabular negociações que consolidassem diplomaticamente os avanços militares. Mas Kieve não quis negociar.

Segunda fase: o fracasso lógico das negociações

Nessa altura, começou a segunda fase. Foi quando ficaram evidentes as falhas militares e estratégicas no planejamento da Operação, a inexatidão das previsões e a frustração da população por suas expectativas que não foram cumpridas. Outrossim, a esperada disposição de um grupo de oligarcas ucranianos para apoiar a Rússia, sob certas condições, não se efetivou.

A ofensiva vacilou em algumas zonas, e a Rússia se viu obrigada a recuar das posições que havia tomado. A cúpula militar tentou conseguir alguns ganhos mediante negociações em Istambul, mas isso não deu nenhum resultado.

As conversações deixaram de ter sentido, porque Kieve considerou que podia resolver o conflito a seu favor por via das armas.

A partir de então, havendo a opinião pública assimilado a feroz russofobia inculcada no trabalho da primeira fase, o Ocidente passou a prover a Ucrânia de todo tipo de armamento numa escala sem precedentes. Então, pouco a pouco, a situação começou a se deteriorar.

Terceira fase: ponto-morto

No verão de 2022, a situação mostrava sinais de estagnação, apesar de a Rússia haver obtido algumas vitórias em certas zonas. Em fins de maio, Mariupol tinha sido tomada.

A terceira fase durou até agosto. Durante esse período, se fez clara a força de uma contradição. Esta envolvia, de um lado, a ideia da Operação Militar Especial como operação rápida e leve, de pouca duração, que deveria entrar logo numa fase diplomática; e, de outro lado, a necessidade de lutar contra um inimigo fortemente armado, que contava com o apoio logístico, inteligencial, tecnológico, comunicacional e político de todo o Ocidente. E, numa frente de enorme extensão, Moscou seguia a orientação dada pela ideia inicial, evitando perturbar a sociedade no seu conjunto e sem se dirigir diretamente ao povo. Isso provocou certo conflito atitudinal entre aqueles na frente da guerra e aqueloutros na retaguarda, o que ensejou dissenções no seio do comando militar. Os dirigentes russos hesitavam em assumir a guerra na sua plenitude, protelando como podiam a mobilização parcial, que já se mostrava imperativa e se tornava questão de urgência.

Durante esse período, Kieve e o Ocidente como um todo recorreram a táticas terroristas. Basta referir os assassinatos de civis na própria Rússia, os ataques à bomba contra a ponte da Crimeia e, posteriormente, os atentados que destruíram os gasodutos do mar Báltico.

Quarta fase: contra-ataques do regime de Kieve

Assim, entramos na quarta fase, marcada pela contraofensiva das forças armadas ucranianas na região de Karquive, já sob controle parcial russo desde o começo da Operação. Os ataques ucranianos ficaram mais intensos também no resto da frente. E o fornecimento massivo de unidades Himars e de sistemas de comunicação satelital Starlink, junto com outra série de material militar, criaram graves problemas para o exército russo, para os quais ele não estava preparado na primeira fase.

A retirada do oblaste de karquive, a perda de Kupiansque e, também, de Krasny Liman, cidade da República Popular do Dombás, foi o resultado de uma “meia guerra” (para empregar a feliz definição de Vladlen Tatarsky). Além disso, os ataques contra territórios “antigos” aumentaram, havendo bombardeios regulares contra Belgorode e o oblaste de Kursque. O inimigo alcançou ainda alguns objetivos em áreas profundas do território russo por meio de aviação não tripulada.

Foi, então, que a Operação se converteu em guerra plena. Ou seja, os dirigentes russos, finalmente, assumiram as responsabilidades colocadas pelo fato consumado da guerra generalizada.

Quinta fase: a mudança decisiva

Depois desses fracassos, decorreu uma quinta fase que, embora tardiamente, mudou o curso das coisas. Putin toma as seguintes medidas: anúncio da mobilização parcial, recomposição da cúpula militar, criação do Conselho de Operações Especiais, subordinação da indústria militar a regime mais rigoroso, responsabilização mais severa de erros e delitos na esfera da defesa do Estado.

Essa fase culminou com o referendo sobre a integração de quatro entidades na Rússia — as regiões da RPD, da RPL, de Kérson e Zaporísia. Outro marco desse mesmo contexto foi o discurso de Putin de 30 de setembro, quando ele declarou, pela primeira vez e com todas as letras, a oposição da Rússia à hegemonia liberal ocidental. Putin afirmou sua plena e irreversível determinação de construir um mundo multipolar. Ele disse que havia começado a fase aguda da guerra das civilizações e acusou a moderna civilização ocidental de ser “satânica”. Posteriormente, discursando em Valdai, o presidente reafirmou e desenvolveu essas suas principais teses.

Mesmo que a Rússia, depois disso, tenha sido obrigada a render a praça de Kérson, os ataques do exército ucraniano cessaram com o recuo, as linhas de defesa russas foram reforçadas, e a guerra entrou numa nova fase.

O passo seguinte na escalada deu-se com os ataques missilísticos contra as infraestruturas técnico-militares e, às vezes, energéticas da Ucrânia, periodicamente destruídas.

A limpeza por dentro da sociedade teve início: os traidores e colaboradores do inimigo abandonaram a Rússia, os patriotas deixaram de ser um grupo marginal e sua postura de abnegada devoção à pátria se converteu — ao menos externamente — na corrente ética dominante. Anteriormente, os liberais costumavam recopilar denúncias sistemáticas contra alguém que mostrasse algum tipo de opinião contrária ao liberalismo, ao Ocidente etc.; agora, em vez disso, alguém com sentimentos liberais cai, automaticamente, na condição de suspeito de ser, no mínimo, um agente estrangeiro ou até traidor, ou sabotador ou simpatizante do terrorismo antirrusso. Seguiu-se a proibição de concertos e comícios daqueles explicitamente opostos à Operação Militar Especial. Destarte, a Rússia dava os primeiros passos no caminho do seu demudamento ideológico.

Sexta fase: o equilíbrio, novamente

Pouco a pouco, a frente se estabiliza, evoluindo para nova estagnação. Nesse momento, nenhum dos lados podia virar o jogo de nenhuma forma. A Rússia se reforçou com a mobilização de nova reserva. Moscou deu apoio aos voluntários e, principalmente, às forças de Wagner, as quais lograram importantes avanços, buscando a vitória em setores particulares do teatro de guerra.

As medidas necessárias para o abastecimento do exército foram providenciadas e, assim, a força passou a contar com o equipamento de que precisava. O movimento dos voluntários estava no seu maximante.

Essa sexta fase dura até agora. Ela se caracteriza por um relativo equilíbrio de poder. Ambas as partes não têm como avançar de forma decisiva e determinante em tal configuração. Porém, Moscou, Kieve e Washington estão dispostas a continuar o enfrentamento pelo tempo que for necessário.

Em outras palavras, a questão de quando terminará o conflito na Ucrânia não tem mais relevância nem sentido. Apenas agora entramos, realmente, em guerra e só agora ganhamos consciência desse fato. Existimos, estando em guerra. Trata-se de existência difícil, trágica e dolorosa. A sociedade russa já se tinha desacostumado de situações assim havia muito tempo. A grande maioria nunca conheceu a realidade da guerra.

Armas nucleares: o argumento final

A gravidade do enfrentamento da Rússia com o Ocidente suscitou novas questões sobre a probabilidade de que o conflito resulte numa escalada nuclear. As armas nucleares táticas (ANT) e as armas nucleares estratégicas (ANE) foram objeto de debate em todas as instâncias, desde o governo até a mídia. Tratando-se de guerra no sentido amplo deste conceito, opondo o Ocidente à Rússia, o emprego desses tipos de armamento deixou de ser problema teórico para se converter em “solução” prática na argumentação das distintas partes envolvidas no conflito.

O estado da arte da tecnologia nuclear, altamente secreto, não permite que se saiba o nível a que chegou a capacidade destrutiva, mas se acredita (provavelmente com razão) que o poder nuclear russo e seus vetores — mísseis, submarinos e outros, excedam bem mais do que o necessário para destruir algumas vezes os Estados Unidos e os outros países da Otan. Por enquanto, a Otan não dispõe de meios suficientes para se proteger de um possível ataque nuclear russo. Assim, em caso de alguma emergência, a Rússia tem a opção de recorrer a esse argumento de última instância.

Putin manifestou-se de forma bastante clara sobre isso. Ele explicou que, em caso de derrota militar direta da Rússia nas mãos dos países da Otan e seus aliados, com ocupação e perda de soberania, a Rússia responderia com armas nucleares.

Soberania nuclear

Ao mesmo tempo, a Rússia também carece de defesas aéreas que a protejam, de forma confiável, de um ataque nuclear dos Estados Unidos. Em consequência, no estalar de um conflito nuclear de grande escala, não importando quem seja o primeiro a disparar, o apocalipse nuclear seria quase certo, perecendo a humanidade, como também, possivelmente, a própria vida em si mesma no planeta como um todo. As armas nucleares — especialmente as estratégicas, não podem ser usadas eficazmente por um só lado. O segundo responderá, e basta isso para queimar a humanidade no forno nuclear. Obviamente, o simples fato da posse de armas nucleares significa que, numa situação crítica, elas podem ser utilizadas por governantes soberanos, ou seja, pelas mais altas autoridades dos EUA e da Rússia. Quase ninguém mais é capaz de influir numa tal decisão sobre o suicídio global. Esse é o sentido da soberania nuclear. Putin foi bastante sincero a propósito das condições para o emprego de armas nucleares. Evidentemente, Washington tem sua própria opinião sobre o assunto, mas é claro que, em resposta a um hipotético ataque da Rússia, contra-atacaria da mesma forma.

O mundo pode chegar a esse ponto? Creio que sim.

Linhas vermelhas da guerra nuclear

O emprego das armas nucleares estratégicas implicará, quase certamente, o fim da humanidade, mas isso só ocorrerá quando certas linhas vermelhas forem cruzadas. Não se deve duvidar disto, doravante. O Ocidente ignorou as primeiras linhas vermelhas que a Rússia havia traçado antes do início da Operação Militar Especial, convencido de que Putin apenas blefava. O Ocidente se deixou convencer, ouvindo a elite liberal russa, que não queria acreditar na seriedade das advertências de Putin. Os avisos dele, entretanto, merecem respeitosa consideração.

Assim, pois, para Moscou, cruzar as linhas vermelhas — e estas são bastante claras — corresponderia a puxar o gatilho da guerra nuclear. E estas linhas consistem numa derrota crítica na guerra da Ucrânia com o envolvimento direto e intensivo dos EUA e da Otan no conflito. Quase se chegou a esse ponto na quarta fase da Operação, quando o mundo falava das armas nucleares como de emprego quase inevitável nesse momento. Apenas alguns êxitos do exército russo por meios de guerra convencionais evitaram que o pior ocorresse. Porém, isso não anulou completamente a ameaça nuclear. Para a Rússia, a questão da confrontação nuclear só deixará de estar na ordem do dia com a sua vitória. Sobre o significado desta “vitória”, falaremos um pouco mais adiante.

O Ocidente não tem motivo para usar armas nucleares

No presente, os Estados Unidos e a Otan não têm nenhuma razão que lhes recomende o emprego de armamento nuclear, nem a terão num futuro previsível. Recorreriam ao poder do átomo apenas em caso de ataque atômico da Rússia, o que não se daria sem alguma razão fundamental (ou seja, uma ameaça grave — um perigo fatal de descalabro militar). Para os Estados Unidos, mesmo a hipótese do domínio russo total da Ucrânia não significaria a violação de suas linhas vermelhas.

Num certo sentido, os Estados Unidos já conseguiram grandes resultados no seu enfrentamento com a Rússia. Eles sustaram a transição pacífica e sem sobressaltos para a multipolaridade, eles isolaram a Rússia do mundo ocidental, eles demonstraram certa debilidade da Rússia no âmbito militar e técnico, eles impuseram graves sanções, eles mancharam a imagem que tinham da Rússia seus aliados reais ou potenciais, eles atualizaram seu arsenal e colocaram à prova novas tecnologias militares em situação de combate real. O Ocidente evitará as armas atômicas. Submeter e desbaratar os russos na guerra convencional é mais interessante e seguro para eles. Se pudessem destroçar a Rússia sem sujá-la de radiação, os ocidentais ficariam mais do que encantados. O mesmo é dizer que, dada a posição do Ocidente, não será ele o primeiro a puxar o gatilho atômico, nem mesmo em longo prazo. Não é este o caso da Rússia. Ela pode ser a primeira a disparar, mas isto dependerá do que fizer o Ocidente. Se a Rússia não for levada para uma situação de perigo existencial extremo, seu arsenal atômico continuará fechado. A Rússia só arrastará a humanidade para o abismo da extinção na guerra atômica se ela mesma for empurrada para o abismo de sua própria aniquilação.

Kieve condenada

E, por último, cabe dizer que Kieve se encontra numa situação muito difícil. Depois que um míssil ucraniano caiu em território polonês, Zelensky chegou a pedir aos seus sócios e padrinhos ocidentais que desfechassem um ataque nuclear contra a Rússia. Qual a razão dessa solicitação?

Ocorre que o Ocidente coletivo, embora perda algo, já ganhou muito e não existe nenhuma ameaça mais crítica da Rússia contra os países europeus da Otan e, muito menos, contra os Estados Unidos. Tudo o que se diz sobre essa questão não passa de pura propaganda.

A Ucrânia, porém, está condenada. A Ucrânia está na situação em que já esteve diversas vezes no decorrer da história. Ela está entre o malho e a bigorna, ou seja, entre o Ocidente e o Império (branco ou vermelho). Os russos não farão nenhuma concessão, manter-se-ão firmes até a vitória final e definitiva. A vitória de Moscou significa a derrota total do regime nazi pró-ocidental de Kieve. Não haverá mais nenhuma Ucrânia como Estado nacional soberano, nem sequer no sentido mais formal desse conceito.

Em tal situação, Zelensky, em parte imitando Putin, proclama sua disposição para puxar o gatilho atômico. Como não haverá mais Ucrânia, então que desapareça também a humanidade. Em princípio, pode-se entender isso, pois se trata de uma aplicação da lógica do pensamento terrorista. Ocorre que Zelensky não tem nenhum gatilho atômico. E não o tem porque não tem soberania. Pedir aos Estados Unidos e à Otan que se suicidem mundialmente em nome da independência (que não passa de ficção) é, no mínimo, uma ingenuidade. Armas, sim; numerário, sim; apoio midiático, sim, obviamente; apoio político, sim; tudo o que quiserem, sim; mas armamento atômico, não!

A razão disso é demasiado óbvia. Como se pode crer seriamente que Washington — por mais fanáticos que sejam hoje os sequazes do globalismo, da unipolaridade e da preservação da hegemonia a qualquer custo — iria se dispor a destruir a humanidade aos brados de “Glória aos heróis!”? Mesmo perdendo toda a Ucrânia, o Ocidente não perderia muito. Então, sem os perigosos brinquedos atômicos que pede aos seus padrinhos ocidentais, os sonhos de grandeza mundial do regime nazista de Kieve terminariam no pesadelo de Zelensky. Não há duvidar disso.

Em outras palavras, as linhas vermelhas de Kieve não devem ser levadas a sério, por mais que Zelensky atue como chefe de bandos terroristas. Ele tomou por refém um país inteiro e ameaça destruir a humanidade.

O fim da guerra: os objetivos da Rússia

Decorrido um ano desde o começo da guerra na Ucrânia, está bastante claro que a Rússia não a pode perder. O desafio é existencial: ser ou não ser um país, ser ou não ser um Estado, ser ou não ser um povo. Não se trata de simples disputa territorial ou reforço de segurança. Era assim há um ano. Agora, não. Agora as coisas são muito mais agudas. A Rússia não pode perder, e a violação desta linha vermelha nos leva de novo ao tema do apocalipse atômico. O fim do mundo, todos deveriam saber disso, não depende apenas da decisão que Putin venha a tomar. Antes, resultaria da lógica de toda a trajetória histórica da Rússia, que em todas as etapas lutou para não cair na dependência do Ocidente. Os russos bateram-se vitoriosamente contra a Ordem Teutônica, contra a Polônia católica, contra o burguês Napoleão, contra o racista Hitler e derrotarão também, desta vez, os globalistas modernos. A Rússia será livre ou não será nada.

Uma pequena vitória: a liberação dos novos territórios

Nesta altura, fica faltando considerar aquilo em que consiste a vitória. Há três opções.

A escala mínima da vitória para a Rússia poderia ser, sob certas circunstâncias, tomar o controle de todos os territórios das quatro novas entidades constituintes da Federação Russa: as regiões da RPD, da RPL, de Kérson e de Zaporísia. Paralelamente, a Ucrânia seria desarmada e ficaria em condição de neutralidade pelo futuro previsível. Para isso, Kieve deve reconhecer e aceitar a situação de fato. Neste contexto, o processo de paz poderia começar.

Entretanto, tal cenário é muito improvável. Os êxitos relativos do regime de Kieve na região de Karquive deram aos nacionalistas ucranianos a esperança de que possam derrotar a Rússia. A feroz resistência no Dombás demonstra sua intenção de resistir até o final, inverter o curso da campanha e passar, novamente, à contraofensiva, inclusive na Crimeia. Por causa disso, fica totalmente improvável que as atuais autoridades de Kieve aceitem o que chamei de “a pequena vitória russa”.

Apesar disso, para os ocidentais, essa seria a melhor solução, já que com uma pausa nas hostilidades eles poderiam militarizar ainda mais a Ucrânia, como o fizeram pelo tempo que duraram os acordos de Minske. A própria Ucrânia — mesmo sem essas regiões — seria ainda um território enorme, e sua neutralidade poderia lhes parecer confusa na ambiguidade de seus termos, o que decerto explorariam para a vantagem do Ocidente.

Moscou entende tudo isso, Washington também entende, um pouco menos. Entretanto, os atuais dirigentes de Kieve não o querem entender de nenhuma forma.

Uma meia vitória: a liberação da Novirrússia

A versão intermediária da vitória para a Rússia seria a de liberar todo o território da Novirrússia histórica, que inclui a Crimeia, as quatro novas entidades russas e ainda as três regiões abarcando Karquive, Odessa e Nikolaieve (com partes de Krivói Rogue, Daniepre e Poltava). Isto completaria a divisão lógica da Ucrânia em Ucrânia Oriental e Ucrânia Ocidental, que possuem histórias, identidades e orientações geopolíticas diferentes. Tal solução seria aceitável para a Rússia e, sem dúvida, vista como vitória real, completando o que começou e logo se encerrou em 2014. No seu conjunto, também conviria ao Ocidente, cuja estratégia sofreria mais com a perda de Odessa. Porém, mesmo esta perda não seria tão crucial, dado existirem outros portos do mar Negro na Romênia, na Bulgária e na Turquia, três países da Otan.

Está claro que para Kieve tal cenário é, categoricamente, inaceitável, mas uma ressalva deve ser feita aqui. É categoricamente inaceitável para o regime atual e no atual contexto militoestratégico. No caso da liberação completa das quatro novas entidades da Federação e com a posterior entrada das tropas russas nas três novas regiões, a situação seria bem outra. O exército ucraniano, o estado psicológico da população, o potencial econômico e o próprio regime político de Zelensky estariam completamente quebrantados. A infraestrutura da economia seguiria sendo destruída pelos ataques russos, e as derrotas nas linhas de frente redundariam no total abatimento da sociedade, já exausta e sangrada pela guerra. Talvez haja um governo diferente em Kieve, podendo ser que até mude o governo de Washington, onde um governante realista iria, sem dúvida, reduzir o apoio à Ucrânia, simplesmente por calcular com sobriedade os interesses nacionais dos EUA, sem a crença fanática na globalização. Trump é um exemplo vivo de que tal situação é possível e, mais do que isso, provável.

No contexto da vitória intermediária, ou seja, a liberação completa da Novirrússia, seria extremamente vantajoso para Kieve e para o Ocidente negociar acordos de paz. Eles preservariam o resto da Ucrânia, pelo menos. Poder-se-ia estabelecer um novo Estado sem as restrições e obrigações atuais, que seria convertido — bem gradualmente — numa base a mais para cercar a Rússia. O projeto da Novirrússia afigura-se perfeitamente aceitável para o Ocidente, pois o restante da Ucrânia estaria salvo. Os ocidentais ganhariam com isso, futuramente, quando terão boa posição para voltar a confrontar a Rússia soberana.

Uma Grande Vitória: a liberação da Ucrânia

Por fim, uma vitória completa da Rússia implicaria a libertação de todo o território da Ucrânia do jugo do regime nazista pró-ocidental e o restabelecimento da unidade histórica tanto de um Estado eslavo oriental quanto de uma grande potência euro-asiática. A multipolaridade estaria consolidada, irreversivelmente, e a história da humanidade seria sacudida e revirada. Além disso, só uma vitória desse tipo permitiria o alcance pleno dos objetivos fixados no princípio: a desnazificação e a desmilitarização da Ucrânia.

O geopolítico atlantista Zbigniew Brzezinski escreveu com razão que “sem a Ucrânia, a Rússia não pode se converter num império”. É isso mesmo. Porém, nós podemos considerar essa fórmula de uma perspectiva euro-asiática: “Com a Ucrânia, a Rússia converter-se-á em um Império, isto é, um polo soberano do mundo multipolar”.

Mesmo com isso, o Ocidente não sofreria danos críticos num sentido militoestratégico e muito menos num sentido econômico. A Rússia continuaria isolada do Ocidente, demonizada aos olhos de muitos países. Sua influência na Europa cairia para quase zero, podendo ser até negativa. A comunidade atlântica estaria coesa como nunca antes, diante de inimigo tão perigoso. E a Rússia, excluída do Ocidente coletivo, sem tecnologia e fora das novas redes, ainda receberia uma importante população não de todo leal, quando não hostil, cuja integração num espaço unificado custaria esforços extraordinários a um país já cansado de guerra.

E a própria Ucrânia não estaria sob ocupação, mas seria parte de uma única nação sem nenhuma desvantagem étnica e com todas as perspectivas abertas para tomar posições e movimentar-se livremente por toda a Rússia. Caso se prefira, isto pode ser visto como a anexação da Rússia pela Ucrânia, e a antiga capital do Estado russo, Kieve, voltaria a estar no centro do mundo russo e não mais na sua periferia.

Mudar a fórmula russa

Por último, vale a pena considerar, nesta análise do primeiro ano da Operação Militar Especial, o impacto causado nas relações internacionais. Trata-se de uma avaliação teórica da transformação que a guerra engendrou no espaço dessas relações.

Aqui temos o seguinte panorama. As administrações de Clinton, do neoconservador Bush Jr. e de Obama, assim como a administração de Biden, são liberais e de linha dura em assuntos internacionais. Consideram que o mundo é global e está dirigido por um Governo Mundial mediante chefes de todos os Estados-nações. Até os próprios Estados Unidos não são, na visão deles, mais do que uma ferramenta temporária na mão da elite mundial cosmopolita. Vem daí a aversão, o ódio dos democratas e dos globalistas em relação a qualquer forma de patriotismo nos Estados Unidos e alhures. Eles não suportam nem mesmo a própria identidade tradicional dos seus conterrâneos.

Para os partidários do liberalismo nas relações internacionais, qualquer Estado-nação representa um obstáculo para o Governo Mundial. O Estado-nação soberano e forte, capaz de desafiar abertamente a elite liberal, é o verdadeiro inimigo a ser destruído.

Depois da queda da URSS, o mundo deixou de ser bipolar e se converteu em unipolar. Então, a elite globalista, os sequazes do liberalismo nas relações internacionais, tomaram as rédeas do governo da humanidade.

A Rússia desmembrada e derrotada dos anos noventas, como remanescente do segundo polo, sob Yeltsin, aceitou as regras do jogo e se prendeu à lógica dos liberais nas relações internacionais. Moscou só devia se integrar no mundo ocidental, soltar-se de sua antiquada soberania e começar a jogar conforme as regras dos donos da bola. O objetivo era obter pelo menos alguma distinção no futuro Governo do Mundo. Naquela altura, a nova cúpula oligárquica fez de tudo para se encaixar no mundo ocidental, e a qualquer custo, individualmente, inclusive.

Todas as instituições de ensino superior da Rússia puseram-se a serviço do liberalismo na questão das relações internacionais. O realismo político, embora ainda conhecido, foi esquecido, acabou equiparado ao “nacionalismo”, e nunca se pronunciou a palavra “soberania”.

Tudo mudou na realpolitik (mas não na educação) com a chegada de Putin. Desde o princípio, Putin foi um realista convicto no campo internacional e um firme defensor da Rússia soberana. Ao mesmo tempo, compartilhava plenamente da universalidade dos valores ocidentais, reconhecia a falta de alternativa ao mercado e à democracia, considerando o progresso social e tecnocientífico do Ocidente como a única via para o desenvolvimento da civilização. Apenas insistia um pouquinho demais na questão da soberania. Daí o mito de sua influência sobre Trump. Foi o realismo que ligou Putin a Trump. Em tudo o mais são muito diferentes. O realismo de Putin não é contra o Ocidente, senão contra o liberalismo nas relações internacionais, contra o unipolar Governo do Mundo. É o realismo estado-unidense, o chinês, o europeu ou qualquer outro.

Entretanto, a unipolaridade que se instaurou desde os princípios dos anos noventas deixou os liberais a cavaleiro nas relações internacionais. Acreditavam que a história tinha chegado ao fim, ou seja, que a confrontação de paradigmas ideológicos (tese de Fukuyama) havia terminado e que deveriam retomar com mais força o processo de unificação da humanidade sob o Governo Mundial. A consecução desse objetivo exigiria deles apenas que se dessem ao trabalho de eliminar os resíduos da soberania ainda existentes aqui e ali.

Essa linha estava em contradição com o realismo de Putin. E, não obstante, Putin buscou manter o equilíbrio e as relações com o Ocidente a todo custo. Isto era muito fácil com o realista Trump, que compreendia a vontade de soberania de Putin, mas se tornou impossível com Biden na Casa Branca. Ocorreu, pois, que Putin, como o realista que é, chegou ao limite das concessões que podia fazer na busca do compromisso. O Ocidente coletivo, guiado pelos liberais nas relações internacionais, pressionou cada vez mais a Rússia para que finalmente começasse a desmantelar a sua soberania em vez de fortalecê-la.

Esse conflito culminou com o início da Operação Militar Especial. Os globalistas participaram ativamente da militarização e nazificação da Ucrânia. Putin rebelou-se contra isso, porque compreendeu que o Ocidente coletivo estava se preparando para uma campanha simétrica de “desmilitarização” e “desnazificação” da própria Rússia. Os liberais fizeram cara de paisagem ante a rápida ascendência do neonazismo russófobo na Ucrânia, de que foram os patrocinadores. Eles fomentaram a sua militarização tanto quanto podiam, enquanto acusavam a Rússia de fazer o que eles faziam em favor do militarismo e do nazismo. E chegaram ao ponto de equiparar Putin com Hitler sob todos os aspectos.

Putin começou a Operação Militar Especial como um realista. Nada mais do que isso. Um ano depois, porém, a situação é outra. Ficou claro que a Rússia está em guerra contra a civilização liberal ocidental moderna como um todo, contra o globalismo e os valores que o Ocidente impõe ao mundo. Essa mudança havida na consciência russa da situação mundial talvez seja o resultado mais importante de toda a Operação Militar Especial.

A guerra, que antes tinha por fim a defesa da soberania, reveste-se agora do caráter de um choque entre civilizações. A Rússia já não se limita a insistir na governança independente, compartindo atitudes, critérios, normas, regras e valores ocidentais, mas atua como uma civilização independente, com suas próprias atitudes, critérios, normas, regras e valores. A Rússia não tem nada de nada a ver com o Ocidente.

Não é, a Rússia, um país europeu, mas sim uma civilização ortodoxa eurasiana. Assim falou Putin no seu discurso alusivo à admissão das quatro novas entidades à Federação Russa em 30 de setembro [de 2022]. Disse o mesmo no discurso de Valdai e, depois, em muitas outras ocasiões. Por último, no Decreto 809, Putin aprovou as bases da política estatal de proteção dos valores tradicionais russos, uma axiologia que difere bastante do liberalismo e que, em alguns pontos, confronta-o diretamente.

A Rússia mudou o seu paradigma do realismo para a teoria do mundo multipolar, ela rechaçou cabalmente o liberalismo em todas as suas formas, ela desafiou frontalmente a civilização ocidental moderna e ela contraditou a sua pretensão de ser universal. Putin já não acredita no Ocidente. Ele qualifica a civilização ocidental moderna de “satânica”. Nisto se pode identificar, facilmente, uma referência direta tanto à escatologia e à teologia ortodoxas quanto à confrontação dos sistemas capitalista e socialista da era de Stálin. A Rússia de hoje não é, consabidamente, um Estado socialista. Esta condição, porém, decorreu da derrota que a URSS sofreu no começo da última década do século XX, quando a Rússia e outros países pós-soviéticos devieram colônias ideológicas e econômicas do Ocidente global.

Todo o governo de Putin até o dia 24 de fevereiro de 2022 foi uma preparação para este momento decisivo. Só que, antes, ele se mantinha preso à política realista. A via ocidental dada pelo binômio “desenvolvimento e soberania”, nas condições heteronômicas de então, era seguida sem desvios. Agora, não, tudo mudou agora. Neste transcurso de um ano de duras provações e terríveis sacrifícios por que passou a Rússia na guerra, o novo lema e o novo rumo da via russa para o futuro têm expressão nas palavras “soberania e identidade civilizacional”.

Os nossos inimigos serviram de baliza para orientar a Rússia ao encontro de si mesma. Portanto, agora, afinal, a Rússia segue o seu próprio caminho.

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Fonte: El Manifiesto. Autor: Alexander Dugin. Título original: La guerra de Ucrania: una guerra entre dos mundos. Data de publicação: 18 de fevereiro de 2023. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.

 

Andrew Joyce resenha Julius Evola O mito do sangue: a gênese do racialismo

A história do meu interesse por Julius Evola é a prova de que nem sempre a primeira impressão é a que fica. Eu devia ter uns 25 anos, quando adquiri o meu primeiro livro do filósofo italiano — um bonito volume de capa dura de Revolta contra o mundo moderno. Eu fiquei pensando em encomendar o livro depois das referências de alguns amigos e outras pessoas de minhas relações, até que, finalmente, decidi comprar o livro depois de assistir ao discurso/palestra de 2010, como sempre excelente, de Jonathan Bowden, sobre Evola, intitulado The world’s Most Right Wing Thinker [O pensador mais direitista do mundo]. Após tantas recomendações, minha expectativa era bem alta e, talvez por isso, ou pelo conteúdo mesmo, no final eu estava decepcionado com o livro. Até então, eu havia feito algumas incursões nos trabalhos de Nietzsche e Heidegger e na filosofia anglo-americana, ou seja, a tradição da filosofia analítica, que parecia bastante atrativa para mim. Por conseguinte, eu desenvolvi um tipo de preconceito contra a filosofia continental (e contra os filósofos continentais), atribuindo-lhe como suas marcas a pose das mais pretensiosas, os argumentos tautológicos ou repetitivos e, entre estes, o aroma de marxismo mais do que suave. Ideologicamente falando, Evola estava a anos-luz de alguns charlatães de sua época, como Jean-Paul Sartre. Durante a leitura de Revolta, entre as suas elucubrações meio místicas, eu percebi que decerto Evola tivesse pensamentos extremamente importantes a oferecer. Daí mesmo decorreu a grande frustração de minha parte, porque o autor, não obstante as coisas de enorme valor que, aparentemente, tinha a dizer, expressou tudo numa linguagem enrolada, sem necessidade disso, e as ideias acabaram perdidas na confusa estrutura textual, infelizmente. Chateado com essa experiência, eu não voltaria a ler Evola nos anos seguintes. E esta foi uma reação de que hoje eu me arrependo.

 

No período que vai da minha leitura de Revolta até a posterior descoberta que fiz de Evola, começou a aumentar a importância atribuída ao italiano no meio hegemônico da academia, graças ao número crescente das traduções e à favorável recepção de sua obra. Os dois trabalhos mais importantes dos últimos anos são, provavelmente, os de Francesco Germinario e Paul Furlong. O primeiro escreveu Razza del Sangue, razza dello Spirito; Julius Evola, l’antisemitismo e il nazionalsocialismo (1930-1943), publicado pela Bollati Borlinghieri em 2001. O segundo escreveu Social and Political Thought of Julius Evola, publicado pela Routledge em 2013. No seu livro, Paul Furlong predicamenta Evola como o maior pensador anti-iluminista. Outro acadêmico, Marcus Hunt, diz de Paul Furlong que nesse seu livro ele “descarta de forma convincente a alegação que faz o acadêmico Roger Griffin [esquerdista e “antifascista”], assumida por muitos outros, de que Evola seria meramente um filósofo do fascismo, sugerindo, ao contrário, que o autor italiano deva ser compreendido ‘no contexto do pensamento conservador europeu desde 1789’”.(1)

 

O pensamento de Evola crescia em proeminência desde a década de 1970, quando se tornou influente, especialmente na Nova Direita francesa. Alguns dos notáveis textos daquela época são os seguintes: Julius Evola, le visionnaire foudroyé (Michel Angebert e Robert de Herte, 1977),  Julius Evola e l’affermazione assoluta (Philippe Baillet, 1978), La Terre de lumière: Le Nord et l’origine (Christophe Levalois, 1985), L’Empire Intérieur (Alain de Benoist, 1995) e Enquête sur la Tradition aujourd’hui (Arnaud Guyot-Jeannin, 1996). Isso, por sua vez, levou a uma crescente (e ainda presente) reação de preocupados acadêmicos esquerdistas, evidenciada, especialmente, nos trabalhos de Thomas Sheehan(2), Elisabetta Cassina Wolff(3), Stéphane François(4) e Franco Ferraresi, autores que descreveram Evola in 1987 como “o mais importante intelectual da Direita Radical na Europa contemporânea”.(5) Aliás, quando foi da vitória de Trump, a histeria midiática concentrou-se por certo tempo na declarada admiração de Steve Bannon pelo filósofo italiano.

 

Até essa altura, eu tinha conhecimento de que a mídia estava em polvorosa, mas não sabia nada de desenvolvimentos mais profundos até que, no ano passado [2017], eu encontrei um livro de Evola, por acaso, num sebo. O título era A Handbook for Right-Wing Youth [Guia para a juventude de direita]. Eu o peguei, dei uma folheada pela simples curiosidade e, então, tive um choque ao perceber o novo Evola dentro dele. Com cerca da metade do tamanho de Revolta, o livro que encontrei tinha um tom mais brando, porém era mais incisivo e direto. Não havia mais misticismo. O texto tratava, exclusivamente, de questões práticas, de ação. Era notavelmente atemporal, também, contendo sabedoria e alento que seriam efetivos e úteis para qualquer militante de nossa causa hoje. Gostei bastante do Handbook, Evola ganhou um lugar permanente na biblioteca da minha casa. Passei, então a estudá-lo, buscando conhecer os trabalhos dele e a recepção que estavam tendo da parte do hegemonismo acadêmico. Foi com grande interesse, nessa altura, que tive conhecimento de que a editora Arktos estava preparando a tradução e publicação de um outro trabalho de Evola — um livro da década de 1930, tratando da questão da raça e do racialismo. Mais intrigante ainda era o título provocativo: O mito do sangue. O livro da Arktos já circula com uma elegante capa alusiva ao estilo decô. Quando eu o abri, entretanto, eu pensava no que se me iria deparar ali. Seria o Evola místico que não me tinha interessado? Ou seria ainda outro lado do eclético pensador?

 

Desde a parte pré-textual, o livro já ganhava muito com o prefácio do tradutor. Em treze páginas muito bem escritas, John Bruce Leonard presta o utilíssimo serviço não só de explicar relevantes questões linguísticas como também de recapitular a história do texto, referindo que o livro fora originalmente publicado duas vezes — a primeira em 1937, a segunda em 1942. A publicação reiterada e as motivações por trás dela justificam o resumo de Leonard na declaração de que O mito do sangue é “em certos aspectos livro muito peculiar na obra evoliana, um que exige explanação especial”. Em O mito do sangue, o que Evola faz é, basicamente, indicar as referências que o seu mais completo parecer sobre a raça deveria considerar. Por isso o texto foi apresentado por Evola como a primeira parte de um estudo do assunto composto de duas partes — consistindo a segunda parte no livro Synthesis of the Doctrine of Race (tradução em preparação pela Arktos). Evola publicou Synthesis depois de 1937 e logo em seguida julgou que deveria republicar O mito do sangue com algumas significativas alterações. Estas mudanças, explica Leonard, resultaram de uma série de fatores, incluindo o fato de as ideias de Evola terem se tornado mais refinadas desde 1937. Ele pretendia, basicamente, revisar alguns dos trabalhos anteriores de acordo com as conclusões mais sólidas que alcançara na altura da publicação de Synthesis.

 

Entretanto, o mais importante, talvez, terá sido a mudança acentuada na ambiência imediata de Evola quanto ao pensamento racial. Um ano depois da primeira publicação de O mito do sangue,  foi aprovado como lei o Manifesto della razza — diploma legal explicitamente decalcado na legislação nacional-socialista, mas depreciado por Evola em O caminho do cinábrio como “trabalho atabalhoado”. Isto não quer dizer que Evola discordasse do princípio da legislação racial.    Na verdade, ele sentia que tais leis eram necessárias na Itália, “devido, principalmente, ao Império Italiano que emergia na África; elas eram convenientes para estabelecer um páthos de distância da parte dos italianos na interação deles com os africanos”. A objeção de Evola dizia respeito ao estilo, ao espírito, ao sentido da legislação racial em alguns relevantes aspectos. Com efeito, O mito do sangue representou a contribuição de Evola para a crítica construtiva do racialismo científico e materialista.

 

O livro divide-se em doze capítulos, abrangendo o que Evola chamou de “genealogia”, em vez de história, do pensamento racialista. Essas seções tratam de muitos tópicos dessa temática: as origens profundas da reflexão racialista, desde os tempos bíblicos até o século XVIII; a obra do conde Gobineau; a ciência racial de finais do século XIX; o trabalho de Houston Stewart Chamberlain; os pareceres do próprio Evola sobre a teoria da hereditariedade e a “tipologia racista”; as crenças contemporâneas concernentes à raça norte-atlântica; a historiografia de influência racial do tipo da produzida por Alfred Rosenberg; a Questão Judaica e o antissemitismo; o racialismo e a lei; as visões de Evola quanto às leis raciais da Alemanha; e, finalmente, a compreensão do próprio autor a respeito do pensamento racial de Adolf Hitler. De um ponto de vista puramente histórico, deve estar claro, agora, que O mito do sangue oferece notável conjunto de juízos sobre alguns dos mais relevantes e controversos assuntos da temática racial, tanto do tempo de Evola quanto do nosso.

 

Evola disserta sobre essas questões interligadas de modo bastante descritivo, objetivo, fazendo que, para alguns leitores, o texto possa parecer obscuro quanto ao sentido exato (ou essencial) em que consiste a sua crítica ao racialismo científico. (Furlong já sugeriu que Evola explica melhor o que as suas ideias não são do que o que elas são.) Minha própria impressão — e estou muito preparado para aceitar outras leituras, se necessárias — é que a crítica de Evola cifra-se a duas postulações principais recorrentes sutilmente ao longo de todo o texto.

Esses reparos podem ser expressos nos dois pontos seguintes:

  1. a) Evola acredita faltar ao pensamento racial em geral uma visão da raça de mais acentuado viés aristocrático, ou seja, ele critica o pressuposto de que ser ariano dependa apenas do nascimento, indicando se tratar também de uma questão de espírito, nobreza, caráter. Ferraresi cita Evola quanto à significação de povo: “Só em referência a uma elite pode-se dizer ‘é de raça’, ‘tem raça’ [no sentido dessa palavra no francês, isto é, ‘boa cepa’]: o povo é só gente, massa.” Em outras palavras, Evola defende um conceito de raça radicalmente anti-igualitário e aristocrático;
  2. b) Evola revela preocupação ou mesmo irritação com o lugar privilegiado concedido ao tipo nórdico em detrimento de outras raças europeias.

Essas críticas colocam as interpretações estritamente biológicas da raça numa condição especial no pensamento de Evola. Olindo de Napoli usa o descritor “racismo espiritual” para designar tal pensamento na Itália dos anos de 1930 e descreve Evola como “o ponto de referência para todos os racistas espirituais”.(6) Segundo a avaliação que Napoli faz de Evola, o trabalho altamente influente (pelo menos na Itália) do filósofo e sua “complexa teoria do racismo não tinham sido purgados de elementos biológicos: estes foram, meramente, subordinados aos componentes voluntarísticos num emaranhado de relações”. Da mesma forma, Wolff caracterizou o pensamento de Evola como,

 

racismo “totalitário” ou “tradicional”, inspirado pelo livro de Ludwig Ferdinand Clauss intitulado Rasse und Seele [Raça e alma]. De acordo com essa doutrina, as raças superiores são constituídas por pessoas dotadas de propriedades biológicas específicas, o que não é estranho ao racismo antropológico, mas essas pessoas possuem, ao mesmo tempo, características “espirituais”: são homens de um forte caráter, capazes do governo de si mesmos e do domínio sobre as próprias paixões, pelo que seguem “naturalmente” os valores da Tradição. Evola pretendeu, com o racismo totalitário, prover as diretrizes para a seleção de uma super-raça que pudesse dominar o mundo: uma combinação das raças aríaco-alemã e romana. O antissemitismo de Evola consistia também nesse mesmo tipo de racismo totalitário. Os judeus não eram estigmatizados enquanto exemplares de uma raça biológica, mas como aqueles identificados a uma mundivisão, a um modo de ser, a um modo de pensar — ou, mais simplesmente, a um espírito — que Evola associava ao que de “pior” e “mais decadente” existe na modernidade: a democracia, o igualitarismo e o materialismo.(7)

 

No primeiro capítulo, “Origens”, Evola diz que o racismo descansa sobre três princípios. O primeiro é que a humanidade é uma ficção abstrata. “A natureza humana é fundamentalmente diferençada.” Entre as raças diferentes prevalece a desigualdade, e a desigualdade é o dado original e a condição normal. O segundo, um princípio mais abstrato, é que cada raça possui um determinado “espírito”, refletido nas características físicas que lhe correspondem e nos métodos que lhe são próprios de construção civilizacional. O terceiro é que para uma raça importa permanecer fiel ao seu espírito e tipo, cumprindo as leis da hereditariedade e a não mistura de sangue papel de importância vital na história da raça. Evola afirma que os corolários desses princípios podem ser identificados em crenças da Antiguidade:

Depara-se-nos, já na Antiguidade, a ideia das diferenças inatas, congênitas e, nalguma medida, até mesmo “fatais”, entre os seres humanos, porque sua origem remonta a estádio pré-humano da evolução humana. Daí, por exemplo, aquela tradição, tradição também romana, pela qual todos aqueles conectados com as influências do Sol seriam dominus natus, ou seja, homens destinados, natural e inevitavelmente, à condição de dominadores.

 

Eu creio que Evola faz analogia mais apropriada ao mencionar os princípios raciais da Bíblia, contidos, especialmente, no Velho Testamento ou Torá. Em seu livro A people that shall dwell alone [Um povo que habitará só], Kevin MacDonald trata desses princípios de forma mais clara e científica, mas Evola está correto ao indicar “certos elementos racistas na teoria da descendência” de antigos textos judaicos. Julgo, também, bastante interessante a discussão de Evola sobre as ideias raciais do imperador Juliano, o Apóstata. Juliano rejeitou a ideia judaica, e depois cristã, de que toda a humanidade seria originária de um só par humano (isto é, Adão e Eva). Em vez disso, e conforme  com o pensamento gentílico, Juliano notou “como são tão diferentes os corpos de germanos e citas em relação aos de líbios e etíopes”, insistindo em que a criação dos diversos povos teria ocorrido separadamente.(8)

 

Passando aos períodos da Idade Média e do Renascimento, Evola faz referência à doutrina dos quatro humores, teorizada por Hipócrates e Galeno, considerando-a antecedente da compreensão biológica da raça, e refere, de passagem, os aditamentos que ela recebeu, posteriormente, de Paracelso, Jean Bodin e Pierre le Charron (este, em 1601, criou uma tipologia étnica). Evola vê a reflexão racial e eugênica, também, na obra de Tommaso Campanella (1589-1639). O autor de A cidade do Sol fazia chacota dos europeus de seu tempo, que “se dedicam com grande zelo ao melhoramento das raças de cachorro, cavalo e galinha, sem se dignarem de fazer o mesmo pela raça dos homens”. Evola revela que, para chegar à sua própria compreensão espiritual da raça, leu os trabalhos de Herder (com o seu conceito de Volksgeist [Espírito do Povo]), Fichte, Franz Bopp, August Friedrich Pott e Jakob Grimm.

 

No segundo capítulo, Evola muda o campo da sua genealogia da reflexão racial, que passa das considerações filosóficas para as categorias biológicas. Embora intitulado “The Doctrine of Count Gobineau” [A doutrina do conde Gobineau], o capítulo explora, contextualiza e conecta os trabalhos de Johann Friedrich Blumenbach, Peter Camper, Anders Retzius, Paul Broca, Fabre D’Olivet, Gustave D’Eichtal e Victor Courtet de L’Isle. Evola atribui à contribuição de Gobineau a descoberta das causas raciais da morte das civilizações. Evola escreve:

A chave para explicar o declínio da civilização é, segundo Gobineau, a degeneração étnica. Um povo degenera “porque ele deixa de ter o mesmo sangue em suas veias, porque a adulteração continuada do seu sangue termina por comprometer a sua qualidade”. Em outras palavras, apesar de a nação manter o nome dado por seus fundadores, esse nome não mais corresponde à mesma raça”.

 

A mim me pareceu interessante a ponderação de Evola a respeito de Gobineau, não apenas pelos conhecimentos e sua síntese, mas também pelo fato bastante óbvio de que Evola não gosta de certas coisas no trabalho do francês. Principalmente, por exemplo, não lhe agrada a discussão de Gobineau sobre a “Roma semítica”, na qual este questiona a infusão de sangue negro no estoque genético da população do Sul da Itália. Evola não explicita nunca o seu desagrado (aliás, compreensível), mas esse é um sentir velado que, certamente, se pode perceber em todo o tratamento mais amplo dado não só a Gobineau como a todos os outros pensadores nórdicos que vieram depois, mais sensíveis à questão da pureza racial. Dada a tacitez da discordância, o texto não se torna uma contestação aberta do tipo “bateu-levou”, mas a tensão discreta que o permeia só eleva, para mim, pessoalmente, a qualidade e o interesse de sua leitura. Na verdade, Evola mostra admiração pela maior parte do trabalho de Gobineau e abre o terceiro capítulo fazendo altos elogios ao francês, em cuja pessoa identifica a “manifestação de um instinto aristocrático”.

Nesse terceiro capítulo, “Desenvolvimentos”, Evola lida com o pensamento posterior a Gobineau, ocupando-se, máxime, com outro francês, o conde Georges Vacher de Lapouge. Ele atribui a Lapouge o crédito (se este for o termo correto) de haver dividido a raça branca, indo-europeia ou ariana em categorias como “o homem alpino”, “os homens oeste-atlânticos” etc. Em Lapouge, ele vê a origem da ideia do ariano nórdico como um loiro dolicocéfalo. Eram tantas as preocupações de Lapouge quanto a ângulos faciais e proporções cranianas, que ele profetizou: “Eu estou convencido de que, no próximo século, milhões de homens estarão nos campos de batalha pela diferença de um ou dois graus no índice cefálico”. Evola cita Lapouge desapaixonadamente, mas o leitor fica com a forte impressão de que ele aponta no francês um dos mais claros e piores exemplos de racialismo materialista. Mais ambivalente é seu tratamento de outros antropólogos, como Ludwig Wilser, Friedrich Lange, Ludwig Woltmann e Heinrich Driesmans.

No quarto capítulo, é considerada a obra do nordicista pangermânico Houston Stewart Chamberlain. Evola é implacável nas críticas a Chamberlain, notando quanto ao livro Foundations of the Nineteenth Century [Os fundamentos do século XIX] que “O leitor fica meio perturbado com a falta de sistematicidade de Chamberlain, que divaga entre um assunto e outro, movimento que costuma ser a marca bem marcante do diletante”. E, novamente, se percebe o desagrado de Evola, desta vez diante do desprezo de Chamberlain para com os latinos, excluídos do conjunto das raças superiores, reservado apenas aos celtas, teutões e eslavos. Até mesmo a discussão de Chamberlain sobre a espiritualidade contém, segundo Evola, “violento sentimento anticatólico e antirromano”. Como se não bastasse, Chamberlain também emprega a palavra “latinização” para significar a “fusão caótica de povos”, irritando ainda mais o conde italiano que, desta vez, perde a paciência: “O racismo de Chamberlain apela aos mais banais e simplórios lugares-comuns encontradiços na interpretação não tradicional da história e no iluminismo liberaloide e profano”. Na conclusão do capítulo, Evola reserva dizeres mais amenos e nuançados para o maior discípulo de Chamberlain: Joseph Ludwig Reimer.

 

Os capítulos quinto e sexto abordam a teoria da hereditariedade e a tipologia das raças. No segundo destes tópicos, Evola fala quase exclusivamente da obra de Hans F. K. Günther, especialmente de sua taxionomia antropológica. A discussão, tão refletida e densa, não pode ser resumida sem injustiçar o conde. Basta dizer que Evola parece apreciar a classificação de Günther por não ter considerado apenas as diferenças físicas entre as raças, mas também aspectos psíquicos, psicológicos e outros quase espirituais.

No sétimo capítulo, “O mito do Ártico”, Evola passa em revista as teorias que tratam da origem polar da raça branca. Mais uma vez, de forma sutil, transparece a pouca paciência de Evola ao lidar com essa linha de pensamento. Ele vê, na hipótese do Ártico, o mesmo persistente e desarrazoado nordicismo já visto alhures.

No oitavo capítulo, “A concepção racista da história”, O mito do sangue volta-se para temas mais contemporâneos (principalmente o pensamento nacional-socialista) pelo restante do texto. Esta última quarta parte do livro é extremamente interessante. Em “A concepção racista da história”, Evola examina o estudo de Alfred Rosenberg. Fica evidente, desde o começo, a forte antipatia de Evola em relação a Rosenberg. Aliás, o próprio título do livro pode ser visto como uma resposta a O mito do século XX, título do livro de Rosenberg. O primeiro erro de Rosenberg é “ter extraído o seu princípio mais importante das teorias de Chamberlain”, e o seu segundo erro é exibir “uma ainda mais forte coloração anticatólica”. A não ser por esses pontos, Evola dá à história racial de Rosenberg o devido reconhecimento, apenas lamentando a sua “incompreensão dos valores estéticos e a depreciação deles ante os valores marciais”. A crítica seguinte de Evola, que a esta altura deve nos parecer familiar, recai sobre a discussão que faz Rosenberg sobre os povos do Mediterrâneo, especialmente os antigos etruscos. De acordo com Rosenberg, os etruscos eram um “povo misterioso e forâneo (levantino), cuja sombria e subversiva influência nunca se obliterou, realmente, apesar das incursões nórdicas”. Assim, pois, Rosenberg reconhece, na descrição do Inferno que faz Dante em A Divina Comédia, um exemplo das “medonhas representações do além-túmulo típicas dos etruscos […], de seus ritualismos supersticiosos, seu satanismo obsceno de tipo levantino”. Como amante da obra dantiana, especialmente de A divina comédia e da majestosamente cavalheiresca A vida nova, acabei concordando, mais ou menos, com o retrato que Evola faz de Rosenberg como profundamente ignorante de questões culturais que requeiram maior sensibilidade.

 

Dito isso, parece difícil evitar a sensação de que O mito do sangue arrisca-se a se confundir com uma apologia racial e filosófica dos não nórdicos. O que salva o texto, continuamente, de acusações nesse sentido é a persistente atitude de Evola com relação ao elitismo e a recorrência deste tema por todo o livro. A principal e, de certa perspectiva, a mais devastadora crítica de Evola contra Rosenberg e outros nacional-socialistas como ele é que a sua ideologia mantém forte sentido igualitário. Evola escreve:

 

A tradição do homem da raça norte-teutônica, de acordo com esses estudiosos, não teve continuação em Carlos Magno, mas sim na linhagem dos saxões pagãos erradicados por esse imperador e, depois, nos Príncipes da Reforma, insurgidos contra a autoridade imperial. Von Leers identifica na revolta antiaristocrática e comunitarista dos camponeses alemães “a última revolução nórdica do Medievo”, sufocada em sangue. E Rosenberg, da mesma forma, identifica nesse evento uma insurreição contra a servidão romana na tríplice forma dada pela Igreja, pelo Estado e pelo Direito, antevendo que essa revolta espiritual voltará a se acender no século XX para a vitória final. Ainda mais fortemente, essas ideias são defendidas por Walter Darré, cujo último trabalho sobre O campesinato como fonte de vida da raça nórdica obteve larga difusão e sucesso na Alemanha, o que gostaríamos da atribuir a causas extrínsecas… O tipo nórdico verdadeiro não é aquele do conquistador, mas aquele do camponês: um camponês armado (pasmem!), pronto para a autodefesa, mas ainda um camponês.

 

Evola fica abismado com o que diz um tratadista como Carl Dryssen, entre outros, para quem era necessário “reconhecer a tradição do socialismo agrícola como tradição teutônica, e daí reconhecer que a Alemanha está basicamente ligada ao Oriente, ao elemento eslavo-bolchevique, ao bolchevismo — um regime também nascido dos agricultores-soldados livres — e deve fazer causa comum contra o ‘Oeste’”. Francesco Germinario resume essas críticas de Evola como,

atacando o caráter grosseiro e plebeu do ‘racismo de sangue’ do nazismo. O nazismo, ele acreditava, definia a raça ariana muito amplamente e, ao mesmo tempo, muito estreitamente: fazendo a raça coextensiva a todo o Volk germânico, os nazistas ofereciam o nobre título de Ariano a qualquer zé-pregueté da comunidade nacional. Disso também decorreu o erro de situar a legitimidade no seio das massas e não nas mãos de seus chefes. Um retorno radical à tradição iria, ao contrário, requerer de fascistas e nazistas o completo abandono do nacionalismo populista em favor de um “imperialismo pagão”. Por outro lado, ao preconizar que os povos nórdicos do Noroeste da Europa eram os únicos arianos, os alemães excluíram, tolamente, outras elites raciais da Europa, com o que demonstraram a inadequação da ideologia nazista para servir de base para a Nova Ordem ou para um ressurrecto Sagrado Império Romano.(9)

 

Essas mesmas críticas reaparecem no décimo capítulo (“A concepção racista do direito”), no décimo primeiro capítulo (“A nova legislação racista”) e no décimo segundo capítulo (“O racismo de Adolf Hitler”). O conteúdo desses capítulos é interessante e merece atenta leitura, mas seu tratamento exaustivo ocuparia muito espaço. Além disso, dado o caráter central e subordinante de tais críticas, qualquer síntese delas arriscaria tornar repetitiva esta resenha de maneira tal que faria deste texto uma injustiça. Pelo restante da resenha eu irei, em razão disso, focar num capítulo do livro que deve ser, ao mesmo tempo, o mais interessante e o mais fora de lugar. Refiro-me ao nono capítulo de Evola — “Racismo e antissemitismo”.

 

Esse capítulo é o mais fora de lugar, porque Evola evita de apresentar um ponto de vista que ele depois critica ou questiona. Em vez disso, e imediatamente, ele coloca a Questão Judaica fora do pensamento racial normal e, então, destaca as especificidades dessa mesma questão que exigem  tal colocação. Evola tinha muita familiaridade com a Questão Judaica. Antes de escrever O mito do sangue, ele editara na Itália Os protocolos dos sábios de Sião. No capítulo “Racismo e antissemitismo”, ele argumenta contra a ideia de que os judeus constituam raça pura semelhante a um Ur-Volk, assegurando que, ao contrário, eles são “povo de origem híbrida” que se tornou biologicamente distinto. Ele admite que a mistura das raças remonta a tempos muito remotos, mas afirma que o povo que vemos hoje foi forjado pelo judaísmo em quamanha medida que acabou desenvolvendo “instintos e atitudes de um tipo especial, os quais se tornaram hereditários na passagem dos séculos”. Ele cita o judeu James Darmesteter como tendo escrito que “os judeus têm sido modelados, para não dizer inventados, pelos seus livros e seus ritos. Assim como Adão foi plasmado nas mãos de Jeová, assim ele [o judeu] foi plasmado nas mãos dos rabinos”. Essas referências, claro, condizem muito bem com a exposição de Kevin MacDonald sobre a função quase biológica do judaísmo em seu A People That Shall Dwell Alone [Um povo que habitará só].

 

De acordo com Evola, o judaísmo não tomou a forma atual no tempo de Cristo, mas sim em período posterior — na época do Talmude. Foi durante esta época que “formulações da Lei judaica reforçaram ainda mais e distinguiram o modo de ser judeu e seu instinto, sobretudo no que respeita à sua relação com os não judeus”. Evola concorda com René Guénon quanto a serem os  judeus que abandonaram a Lei judaica ainda mais perigosos do que os seguidores dela, pois “aquele que não tem raça se volta contra as raças; aquele que não tem nação se volta contra as nações”. Ele também aprova a visão de Heinrich Wolf, que vê o elemento judeu como,

estranho, furtivo, um apátrida em cada pátria… o próprio princípio antirracial, antitradicional, anticultural: não a antítese de determinada cultura, mas de toda cultura, se racial ou nacionalmente determinada… com o espírito dos nômades, dos povos desertícolas sem ligação com nenhuma pátria, os judeus infundiram em vários povos — a começar do romano — o vírus da desnaturalização ou universalismo, do internacionalismo da cultura. Sua ação consiste na corrosão incessante do que quer que seja diferenciado, qualitativo, ligado ao sangue e à tradição.

 

A discussão de Evola sobre a noção dos judeus de que agem como “a luz das nações” é excepcional e de valor inestimável, dizendo respeito ao que Evola refere como o autoconceito judeu de ser o “homem da salvação”. Ela merece ser lida e assimilada completamente, mas basta  dizer aqui que a ação do “homem da salvação” redunda na “contaminação e degradação de todo valor mais alto”. Similarmente, Evola vê, na crença dos judeus como sendo o “Povo Eleito” predestinado à dominação de outros povos, a manifestação de “um profundo e desenfreado ódio a todo não judeu”, que se efetiva num círculo vicioso [de profecia autorrealizável]”. A seguir, Evola cita passagens antigentílicas do Talmude que confirmam as suas preocupações.

Evola insiste em que, desses problemas, embora radicados profundamente na história e nos primeiros escritos do Talmude, nenhum está hoje resolvido: “Aqueles preceitos afetaram, durante séculos, a formação do judeu no âmago do seu caráter: eles deixaram marcas indeléveis”. Evola apresenta o que, na verdade, pode ser uma primitiva versão, datada da década de 1930, da teoria  da estratégia evolucionária de grupo, que depois consagraria Kevin MacDonald. Em vez de falar, estritamente, de genes e traços, Evola menciona um “complexo de instintos” que apenas foi laicizado e se tornou funcional na modernidade. Ele argumenta que esses instintos são, basicamente, revolucionários, “podendo atuar por si mesmos, sem nenhuma dada condição externa, como o fermento de agitação e subversão permanentes”. Evola argumenta contra algumas cogitações antijudaicas do seu tempo envolvendo certas teorias conspiratórias. Em vez disso, ele aventa o parecer de que, dadas as reiteradas situações de persistente participação judaica em atividades subversivas, “não estamos lidando com nenhuma intenção particular ou plano, mas com instintos, com um modo de ser que se manifesta natural e espontaneamente”. “Misturam-se o instinto e a inspiração em convergência. Não se pode dizer que os judeus sejam culpados: os judeus não podem agir senão assim, como o ácido não pode senão corroer. É o ser deles, determinação atávica das suso citadas causas raciais”. O mesmo é dizer “estratégia evolucionária de grupo”, expressão de Kevin MacDonald, parafrasticamente.

Esse nono capítulo termina com uma discussão sobre Os protocolos, mas toda a sua segunda metade, antes disso, está repleta de percepções e comentários dignos de referência. Uma citação de Theodor Fritsch clama por ser incluída aqui: “A comunidade judia tem menos características de  religião do que de conspiração”. Evola entrega até mesmo uma espécie de versão primitiva em ponto menor da Culture of critique (trilogia de Kevin MacDonald), ao esclarecer o sentido maior e subjacente nos trabalhos de Freud, Adler, Claudio Lombroso (criminologista judeu), Nordau, Wasserman, Hirschfeld e Durkheim, observando que,

 

esses são exemplos frisantes, que poderiam ser multiplicados, de ações com mil faces, mas com um só efeito: desintegrar, degradar, subverter. Isso se chama Schadenfreude [chadenfroide ou maletícia em português (n. do trad.)] ou seja, a alegria obtida da desmoralização, da espoliação, da sensualização, da libertinagem, da abertura das portas dos repartimentos “subterrâneos” da alma humana, desliando os seus laços para saciá-la — eis o atributo da Schadenfreude que marca a alma judeo-levantina, a alma do “homem da salvação”.

 

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O mito do sangue é um livro notável sob muitos aspectos — como documento histórico; como contrapeso do moderno e científico pensamento racialista; como exemplo de um radical pensamento anti-igualitarista; como contribuição para discussão da Questão Judaica; como resposta influente e importante dada às visões nordicistas mais rígidas da civilização europeia (do passado, do presente e do futuro); e mesmo como relevante desenvolvimento na obra de Evola. Eu posso dizer com alguma certeza que ninguém concordará com tudo o que Evola tem a dizer no texto, mas eu posso afirmar, por outro lado e da mesma forma, que ninguém precisará se esforçar muito para encontrar nele grandes valores. O livro desafia e provoca, escarnece e cativa, norteia e edifica. Eu fiquei meio frustrado com o conde Evola, que também me deixou perplexo, mas com ele eu aprendi profundas lições. Agora, como no distante 1936, ele não admite ser ignorado.

 

(1) HUNT, Marcus. Review: social and political thought of Julius Evola by Paul Furlong. Political Studies Review, v. 13, p. 239-316, 247. 2015.

(2) SHEEHAN. Thomas. Myth and violence: the fascism of Julius Evola and Alain de Benoist.  Social Research, v. 48, n. 1, p. 45-73. 1981.

(3) WOLFF, Elisabetta Cassina. Apolitìa and tradition in Julius Evola as reaction to nihilism. European Review, v. 22, n. 2, 2014), 258- 273; maio, 2014. Cf. também “Evola’s interpretation of fascism and moral responsibility,” Patterns of Prejudice, 50:4-5, 478-494.

(4) FRANÇOIS, Stéphane. The nouvelle droite and “Tradition”. Journal for the Study of Radicalism, v. 8, n. 1, p. 87-106, 2014. .

(5) FERRARESI, Franco. Julius Evola: tradition, reaction, and the Radical Right. European Journal of Sociology, v. 28, n. 1, p. 107-151, 1987.

(6) NAPOLI, Olindo de. The origin of the racist laws under fascism; a problem of historiography.  Journal of Modern Italian Studies, v. 17, n. 1, p. 106-122, 2012.

(7) WOLFF, Elisabeta Cassina. Evola’s interpretation of fascism and moral responsibility. Patterns of Prejudice. p. 483.

(8) Embora Evola não a tenha mencionado, eu fui levado a me lembrar da passagem dos Edas em que um deus nórdico (para alguns estudiosos era Ódin, para outros, Heimdall) vem ao mundo e procria, gerando três tipos humanos imutavelmente diversos em aparência, espírito e capacidade.

(9) MARTIN, Benjamin. Review: Francesco Germinario: Razza del sangue, razza dello spirito; Julius Evola, l’antisemitismo e il nazionalsocialismo (193043), Modern Italy, v. 9, n.1, p. 124-125, 2004.

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Fonte: The Occidental Observer. Autor: Andrew Joyce. Título Original: Review: Julius Evola’s “The Myth of the Blood: The Genesis of Racialism”. Data de publicação: 18 de setembro de 2018. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.

 

A Reconquista: germanos contra berberes

By José António Primo de Rivera

Na prisão de Alicante, três meses antes de ser assassinado, José António escreve um dos textos literariamente mais belos e historicamente mais profundos sobre a base etnocultural da Espanha. Intitula-se “Germanos contra berberes” e parece ter sido escrito ainda ontem. Confira:

O que foi a Reconquista? Um conceito superficial da História tende a considerar a Espanha como uma espécie de cenário ou passarela permanente por onde desfilam invasores que nos são apresentados no pressuposto de que devamos emprestar a nossa solidariedade ao elemento aborígine. Dominação fenícia, cartaginesa, romana, goda, africana… Desde a nossa infância temos presenciado mentalmente todas essas conquistas como sujeitos pacientes; isto é, enquanto membros do povo invadido. Nenhum de nós, em sua infância romanesca, deixou de se sentir como o sucessor de Viriato, de Sertório, dos numantinos [sorianos]. O invasor era sempre nosso inimigo; o invadido, sempre nosso compatriota.

Considerado tudo, depois, e com mais vagar, já no despontar da maturidade, caíamos num estado de perplexidade: afinal — perguntávamos — a nossa cultura e, mais do que isso, o nosso sangue, as nossas entranhas têm mais em comum com o celtibero aborígine do que com o romano civilizado? Ou seja, não teríamos o perfeito direito, ainda que por foro de sangue, de ver a terra espanhola com olhos de invasor romano, de considerar com orgulho esta terra não como remoto berço de nossos antepassados, mas como solo incorporado pelos nossos a uma nova forma de cultura e de existência? Quem pode dizer que haja mais sangue nosso, mais valores de nossa cultura no interior das muralhas de Numância do que nos acampamentos dos sitiadores?

Talvez possamos, aqueles de nós que procedemos de famílias que viram nascer muitas de suas gerações na América hispânica, compreender melhor tudo isso. Nossos antepassados transatlânticos sentiram-se americanos, assim como se sentem americanos os nossos atuais parentes de lá, da mesma forma como nós nos sentimos espanhóis; eles sabem, porém, que sua qualidade de americanos lhes é dada por sua condição de descendentes daqueles que deram à América a sua forma presente. Sentem a América como entranhadamente sua, porque seus antepassados a ganharam. Aqueles antepassados procediam de outro solar, que já é, para esses seus descendentes, mais ou menos estrangeiro. Em contrapartida, a terra onde vivem atualmente, séculos atrás estrangeira, é agora sua, incorporada como foi, e de forma definitiva, por alguns remotos avós, ao destino vital de sua estirpe.

Esses dois pontos de vista baseiam-se nas duas maneiras de entender a pátria: pela razão da terra ou pela razão do destino. Para alguns, a pátria é o assento físico do berço; toda tradição é uma tradição espacial, geográfica. Para outros, a pátria é a tradição física de um destino; a tradição, assim entendida, é predominantemente temporal, histórica.

Depois dessa prévia delimitação de conceitos, cabe voltar à questão inicial: o que foi a Reconquista? Já se sabe: de um ponto de vista infantil, tratou-se da lenta retomada da terra espanhola pelos espanhóis na luta contra os mouros que a haviam invadido. Mas a coisa não foi bem assim. Em primeiro lugar, os mouros (é mais exato chamá-los de “mouros” do que de “árabes”; a maior parte dos invasores procedia do Norte da África, eram berberes; os árabes, raça muito superior, formavam somente a minoria dirigente) ocuparam a quase totalidade da península em pouco tempo, mas o suficiente para a tomada da posse material, sem luta. Desde Guadalete (ano 711) até Covadonga (718), a História não fala de nenhuma batalha entre os forasteiros e os indígenas. Até o reino de Teodomiro, na Múrcia, resultou de mancomunagem com os mouros. Toda a imensa Espanha foi ocupada em paz. A Espanha e, naturalmente, os espanhóis que a habitavam. Aqueles que retrocederam para as Astúrias eram os remanescentes dos dignitários e militares godos; ou seja, eram os que, três séculos antes, haviam sido, por sua vez, considerados os invasores. O grosso da população indígena (celtibérica, semítica em grande parte, norte-africana por afinidade, toda essa massa mais ou menos romanizada) era tão alheia aos godos como aos agarenos recém-chegados. E mais: sentia muito mais razões de simpatia étnica e consuetudinária com os vizinhos do outro lado do estreito do que com os loiros danubianos aparecidos três séculos antes. É provável que a população espanhola se sentisse mais à vontade governada pelos mouros do que dominada pelos germanos. Isso no começo da Reconquista; no final, nem é preciso falar. Depois de 600, de 700, de quase (em algumas regiões) 800 anos de convivência, a fusão de sangue e costumes entre os aborígenes e os berberes era indestrutível; a interpenetração entre indígenas e godos, ao contrário, entorpecida durante 200 anos pelo dualismo jurídico e, no fundo, recusada sempre pela sensibilidade racial dos germânicos, não deixou nunca de ser superficial.

A Reconquista não é, pois, uma empresa popular espanhola contra uma invasão estrangeira; é, na realidade, uma nova conquista germânica; uma pugna multissecular pelo poder militar e político entre a minoria semítica de uma grande raça — os árabes — e a minoria ariana de outra grande raça — os godos. Nessa pugna tomam parte os berberes e os aborígines, às vezes como componentes da tropa e, às vezes, como súditos resignados de um ou outro dos dominadores, talvez com marcada preferência, ao menos em grande parte do território, pelos sarracenos.

A Reconquista foi uma guerra entre partidos e não uma guerra de independência, tanto que ninguém nunca chamou de “os espanhóis” os que combatiam contra os agarenos, mas sim de “os cristãos”, por oposição a “os mouros”. A Reconquista foi uma disputa bélica pelo poder político e militar entre dois povos dominadores, polarizada em torno de uma pugna religiosa.

Do lado cristão, os chefes proeminentes são todos de sangue godo. Pelágio foi carregado sobre um pavês em Covadonga como o continuador da Monarquia sepultada às margens do Guadalete. Os capitães dos primeiros núcleos cristãos têm o ar inequívoco de príncipes de sangue e mentalidade germânicos. Mais: sentem-se ligados desde o princípio à grande comunidade católico-germânica europeia. Quando Afonso o Sábio aspira ao trono imperial, não adota nenhuma atitude extravagante: pleiteia, com a alegação da maturidade política de seu reino, o que se alentava desde séculos antes na consciência de príncipe cristogermânico de cada chefe dos Estados reconquistadores. A Reconquista é empresa europeia — ou seja, germânica, naquele contexto. Muitas vezes, acorrem para guerrear contra os mouros senhores livres da França e da Alemanha. Os reinos que se formam têm uma base germânica inegável. Talvez não haja na Europa Estados mais fortemente marcados com o selo europeu da germanidade do que o condado de Barcelona e o reino de Leão.

Em síntese — abstração feita dos aportes e influências recíprocas de todos os elementos étnicos na interação de oitocentos anos — a Monarquia triunfante dos Reis Católicos é a restauração da Monarquia gótico-espanhola, católico-europeia, destronada no século VIII. A mentalidade popular de então dificilmente distinguia entre a nação e o rei. Além disso, consideráveis extensões da Espanha, particularmente as Astúrias, Leão e o Norte de Castela, haviam sido germanizadas, quase sem solução de continuidade, durante mil anos (desde princípios do século V até fim do século XV, sem outra interrupção que a dos anos entre Guadalete e a recuperação das terras do Norte pelos chefes godo-cristãos) e ainda sua afinidade étnica com o Norte da África era muito menor do que a das gentes do Sul e do Levante. A unidade nacional sob os Reis Católicos é, pois, a edificação do Estado unitário espanhol de sentido europeu, católico, germânico, de toda a Reconquista. E a culminação da obra de germanização social e econômica da Espanha, o que não deve ser esquecido, porque talvez aí a constante berbere terá encontrado a oportunidade de sua primeira rebelião.

Com efeito, o tipo de dominação árabe era predominantemente político e militar. Os árabes tinham fraco sentido de territorialidade. Não se adonavam das terras, num sentido jurídico privado. Assim, pois, a população camponesa das comarcas mais largamente dominadas pelos árabes (a Andaluzia, o Levante) permanecia numa situação de livre gozo da terra, na forma da pequena propriedade e, eventualmente, de propriedades coletivas. O andaluz aborígine, semiberbere, e a população berbere que formou mais copiosamente nas fileiras árabes gozavam de uma paz elemental e livre, inepta para grandes empresas de cultura, mas deliciosa para um povo indolente, imaginativo e melancólico como o andaluz. Os cristãos, germânicos, ao contrário, traziam no sangue o sentido feudal da propriedade. Quando conquistavam as terras, estabeleciam nelas senhorios, não puramente político-militares como os dos árabes, mas patrimoniais ao mesmo tempo que políticos. O camponês passava, no melhor dos casos, a ser vassalo; tempos depois, quando pela atenuação do aspecto jurisdicional, político, os senhorios tiveram fortalecido o seu caráter patrimonial, os vassalos, completamente desarraigados, caem na condição terrível de jornaleiros.

A organização germânica, de tipo aristocrático, hierárquico, era, na sua base, muito mais dura. Para justificar tal dureza, se comprometia a realizar alguma grande tarefa histórica. Era, na realidade, a dominação política e econômica sobre um povo quase primitivo. Toda aquela enorme armadura: a Monarquia, a Igreja, a aristocracia, podia intentar a justificação de seus pesados privilégios a título de cumpridora de grande destino na História. E isso foi tentado por duplo caminho: a conquista da América e a Contrarreforma.

É um tópico (posto em circulação pela literatura berbérica de que se falará mais tarde) o dizer que a conquista de América é obra da espontaneidade popular espanhola, realizada quase a despeito da Espanha oficial. Não se pode levar essa tese a sério. Muitas das expedições foram organizadas, certamente, como empresa privada; mas o sentido da cristianização e colonização da América está contido no monumento das Leis das Índias, obra que encerra um pensamento constante do Estado espanhol ao longo de vicissitudes seculares. E a conquista da América é também uma tese católico-germânica. Tem um sentido de universalidade sem a menor raiz celtibérica e berbérica. Só Roma e a Cristandade germânica puderam transmitir à Espanha a vocação expansiva, católica, da conquista da América. O que se chama de o espírito aventureiro espanhol será mesmo espanhol no sentido de aborígine ou berbere, ou será uma das marcas do sangue germânico? Não deve ser desprezado o dado de que, ainda em nossos dias, as regiões de onde sai o maior número de emigrantes, ou seja, de aventureiros, são as do Norte, as mais germanizadas, as mais europeias, as que, de um ponto de vista castiço e pitoresco, podem ser chamadas de as menos espanholas. Em contrapartida, é abundantíssimo o número de andaluzes e levantinos que se transplantam a Marrocos, a Orã, à Argélia e que ali vivem tão à vontade como se estivessem em sua casa, como cepa que reconhece a terra distante de onde partiram os seus ancestrais. Esta derivação meridional e levantina para a África não guarda a menor semelhança com as expedições colonizadoras para a América. Aliás, África e América têm sido, desde há muito, as palavras de ordem de dois partidos políticos e literários espanhóis. De dois partidos que coincidem exatamente em quase todos os momentos com o liberal e o conservador; o popular e o aristocrático; o berbere e o germânico. Era coisa quase obrigatória que um escritor antiaristocrático, antieclesiástico, antimonárquico incorporasse no seu repertório frases como “Teria sido melhor se a Monarquia espanhola, em vez de esgotar a Espanha na empresa da América, tivesse buscado nossa área de expansão natural, que é a África”.

Ao lado da conquista da América, a Espanha germânica (duplamente germânica, agora, sob a dinastia dos Ausburgos) trava na Europa o combate católico pela unidade. Trava esse combate e, em longo prazo, perde. E, por causa disso, perde a América. A legitimação moral e histórica da dominação sobre a América estava na ideia da unidade religiosa do mundo. O catolicismo era a justificação do poder da Espanha. O catolicismo, porém, havia perdido a disputa. Vencido o catolicismo, a Espanha restava sem título no qual embasar o império do Ocidente. Sua credencial havia caducado. O astuto Richelieu percebeu isso e, para derrubar a casa da Áustria, não hesitou em ajudar os paladinos da Reforma. Sabia muito bem que a pedra angular dos Ausburgos era a unidade católica da Cristandade.

E assim, batida no embate, primeiro na Europa, depois na América, que tarefa de valor universal alegaria a Espanha dominadora — Monarquia, Igreja, aristocracia — para conservar sua situação de privilégio? Na falta de justificação histórica, na demissão de toda função diretiva, suas vantagens econômicas e políticas restavam como puro abuso. Acresce que, na privação de empregos, as classes dirigentes haviam perdido o brio, até para a sua própria defesa. Pode ser observada uma série de fenômenos muito semelhantes na decadência da monarquia visigótica. E a força latente, nunca acabada, do povo berbere submetido, inicia abertamente a sua vingança.

Porque, mesmo nas horas zenitais da dominação, a “constante berbere” não havia nunca deixado de existir e de operar. Os povos superpostos, dominador e dominado, germânico e aborígine berbere, não se haviam mesclado. Nem sequer se entendiam. O povo dominador mantinha-se alerta contra a mestização com o dominado (até 1756, não se derroga a pragmática de Isabel a Católica que exigia prova de pureza de sangue, isto é, a condição de cristão velho, sem mescla de judeu ou mouro, mesmo que para o exercício de modestíssimas funções de autoridade). O povo dominado, entrementes, seguia detestando o dominador. Numa postura bem típica em relação aos dominadores, adota uma aparência de irônica submissão. Na Andaluzia, chega-se aos mais exagerados extremos da adulação; debaixo, porém, dessa adulação aparente se esconde o mais desdenhoso escárnio para com o adulado. Esta atitude de burla é a mais docemente resignada que adota o povo despossuído. Mais acima, já aparece o ódio e, sobretudo, a afirmação permanente da separação. Na Espanha, a expressão “o povo” conserva sempre um tom particularista e hostil. O “povo hebreu” compreendia, naturalmente, os profetas. O “povo inglês” inclui os lordes; pareceria fora de propósito a um inglês comum que pela denominação popular de inglês não fosse ele incluído na categoria dos maiores governantes do país! Aqui não: quando se diz “o povo” é para significar o indiferenciado, o inqualificável; o que não é aristocracia, nem igreja, nem milícia, nem hierarquia de nenhuma espécie. O próprio D. Manuel Azaña disse: “Não creio nos intelectuais, nem nos militares, nem nos políticos; não acredito senão no povo”. Mas, então, os intelectuais, os militares, os políticos, assim como os eclesiásticos e os aristocratas, não formam parte do povo? Na Espanha, não, porque há dois povos e, quando se fala de “o povo”, sem especificar, se faz referência àquele subjugado, àquele subtraído à sua sempre saudosa existência primitiva, indiferenciada, anti-hierárquica e ele, por isso mesmo, detesta rancorosamente toda hierarquia, característica do povo dominador.

Tal dualidade penetrou todas as manifestações da vida espanhola, as de aparência menos popular, inclusive. Por exemplo, o fenômeno europeu da Reforma teve na Espanha uma versão reduzida, mas totalmente impregnada da pugna entre germânicos e berberes, entre dominadores e dominados. Na Espanha, não se deu nenhum caso de um príncipe herege, como na França ou na Alemanha. Os grandes senhores se mantiveram aferrados à sua religião de casta. Todo herege, pequeno-burguês ou letrado, era como um vingador dos oprimidos. Na sua dissidência alentava, mais do que um tema teológico, uma incurável animadversão contra o aparato oficial, formidável: monarquia, Igreja, aristocracia…

E assim até datas mais recentes. A orientação berbérica, sempre mais aparente, conforme vê declinar a força contrária, assoma em toda a intelectualidade de esquerda, de Larra até aqui. Nem a fidelidade a modas estrangeiras logra ocultar um tom de ressentimento de derrotados em toda a produção literária espanhola dos últimos cem anos. Em qualquer escritor de esquerda há um gosto mórbido, tão persistente e tão molesto que não se pode alimentar senão de uma animosidade pessoal, de casta humilhada. A Monarquia, a Igreja, a aristocracia, a milícia deixam nervosos os intelectuais de esquerda, de uma esquerda que começa bastante à direita para esses efeitos. Não é que submetam essas instituições à crítica; é que, na presença delas, eles são acometidos de um desassossego ancestral, como a aflição que acomete os ciganos quando alguém dá o nome da bicha. No fundo, os dois efeitos são manifestações do mesmo velho chamamento do sangue berberesco. O que odeiam, sem o saber, não é o fracasso das instituições que denigrem, mas seu remoto triunfo; seu triunfo sobre eles, sobre os que as odeiam.  São os berberes derrotados que não perdoam os vitoriosos — católicos, germânicos — por terem sido os portadores da mensagem da Europa.

 

O ressentimento esterilizou toda possibilidade de cultura na Espanha. As classes diretoras não deram nada à cultura, o que não costuma ser sua missão específica em nenhuma parte. As classes subalternas, para produzir algo considerável do ponto de vista da cultura, teriam que ter aceito o quadro de valores europeu, germânico, que é o vigente; e isso lhes causava uma repugnância infinita por ser, no fundo, aquele dos dominadores.

Assim, grosso modo, pode-se dizer que a contribuição da Espanha à cultura moderna é igual a zero. Salvo algum ingente esforço individual, desligado de toda escola, e algum pequeno cenáculo inevitavelmente envolto num halo de estrangeirice.

Depois das escaramuças, teria de chegar a batalha. E chegou: é a República de 1931; será, sobretudo, a República de 1936. Estas datas, principalmente a segunda, representam a demolição de todo o aparato monárquico, religioso, aristocrático e militar que ainda afirmava, mesmo em ruínas, a europeidade da Espanha. A máquina estava inoperante, logicamente; mas o grave é que sua destruição representa a vingança da Reconquista, ou seja, a nova invasão berbere. Estaremos de volta ao indiferenciado. Provavelmente se ganhará em placidez elemental nas condições populares de vida. Talvez o campino andaluz, infinitamente triste e nostálgico, recomece o silencioso colóquio com a terra de que foi desapossado. Quase a metade da Espanha sentir-se-á contemplada da melhor forma possível se isso acontecer. Ter-se-á conseguido operar perfeito ajuste na ordem natural. O mal é que, então, haverá um povo único, o dominador e o dominado num só elemento, povo sem a mínima aptidão para a cultura universal. Tiveram-na os árabes; mas os árabes eram pequena casta diretora, já mil vezes diluída no fundo humano sobrevivente. A massa, que é a que vai triunfar agora, não é árabe, mas berbere. Aqueles suplantados serão os germanos que ainda nos ligavam com a Europa.

Talvez a Espanha se parta em pedaços, ao longo de linhas que estabeleçam, dentro da península Ibérica, os verdadeiros limites da África. Toda a Espanha acabe africanizada, talvez. Mas o certo é que, por muito tempo, a Espanha deixará de contar na Europa. E então, aqueles que pela solidariedade de cultura e ainda pela misteriosa voz do sangue nos sentimos ligados ao destino europeu, poderemos demudar o nosso patriotismo de estirpe, que ama esta terra porque nossos antepassados a ganharam e enformaram, num patriotismo telúrico, que ame esta terra por ser esta terra, mesmo que na sua larga ela tenha emudecido até o último eco do nosso destino familiar?

José António Primo de Rivera
Prisão de Alicante, 13 de agosto de 1936

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Fonte: El Manifiesto. Autor: José António Primo de Rivera. Título original: Germanos contra bereberes. Data de publicação: 18 de janeiro de 2023. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.

 

Só um novo Estado russo poderá vencer a guerra

A Operação Militar Especial expôs os erros sistêmicos de nosso Estado e, na atual confrontação militar com a civilização ocidental, tais defeitos são fatais. Necessitamos de um novo Estado e de uma nova política. Que mudanças devemos fazer para que a Rússia vença a guerra? Vamos enumerar algumas propostas que têm sido feitas. Elas são as seguintes:

a) passar de um Estado autoritário para uma aliança do Estado com o povo, isto é, uma unidade orgânica entre ambos que nos permita superar a manipulação em favor da honestidade;

b) substituir o paradigma liberal pelo socialismo popular, favorecendo o apoio material ao setor público e aos mais necessitados;

c) desmontar o aparato do grande capital (a oligarquia) e entregá-lo às competentes empresas pequenas e médias (nacionalização da grande indústria);

d) deixar de lado o comércio de matérias-primas e substituí-lo pela economia do conhecimento e pela revitalização do mundo rural;

e) desagregar as grandes concentrações urbanas e repovoar as terras russas: devemos destruir as grandes urbes e voltar às pequenas cidades e comunidades rurais;

f) acabar com a impunidade e o favorecimento de burocratas corruptos e ineficazes mediante o princípio da meritocracia. (Urge entregar o poder a quem tenha demonstrado ser digno de seus cargos.);

g) passar de uma sociedade baseada em relações públicas para outra totalmente ideologizada: jornalistas devem defender aquilo em que acreditam em vez de fazer propaganda de conveniência casual;

h) repudiar a cultura do entretenimento em favor de uma cultura clássica formativa, edificante e filosófica;

i) compreender historicamente a nossa realidade: definir de forma precisa o lugar da Rússia atual no conjunto de toda a nossa história, com o devido reconhecimento à antiga Rus, ao Reino de Moscóvia, ao Império Russo e à URSS, mencionando episódios como o Tempo dos Problemas e a infame década dos anos noventas como desvios do caminho para o cumprimento de nossa missão;

j) proteger nossos valores tradicionais e erradicar tudo o que não tiver a ver com eles, confiando esta missão a pessoas capazes e não a simples gestores aleatórios;

k) construir uma sociedade solidária composta por,

uma classe espiritual que seja a bússula moral dessa sociedade;

uma classe de belatores como representantes de uma elite política e social (nova nobreza ou, se melhor assim, uma nomenclatura do partido);

trabalhadores honestos (aí incluídos os empresários) como representantes do homem comum;

l) criar uma elite intelectual russa independente dos paradigmas e estratégias da civilização ocidental;

m) retornar a uma sociedade tradicional com uma família forte e rechaço à interpretação secular, contratual e individualista do matrimônio.

Todos esses pontos, bastante evidentes, constituem as condições necessárias para a nossa vitória. Se não os tomarmos em conta e deixarmos tudo malparado como está, simplesmente estaremos nos condenando à derrota. O modelo de Estado anterior à guerra, relativamente eficaz, já não corresponde às necessidades históricas do contexto atual. A Operação Militar Especial deixou expostos os defeitos fundamentais de nosso Estado e, na presente confrontação militar com a civilização ocidental, tais defeitos são fatais. Necessitamos de um novo Estado e de uma nova política. O tempo urge. Creio que devamos fazer importantes avanços nessa direção durante o próximo ano [2023].

Se não for assim…

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Fonte: El Manifiesto. Autor: Alexander Dugin. Título original: Sólo un nuevo Estado ruso podrá ganar la guerra. Data de publicação: 15 de janeiro de 2023. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.

Nota do editor de El Manifiesto:

Que pena! Como dói, num artigo tão extraordinário e importante como esse, ler palavras de homenagem, ainda que breves, à antiga URSS. A reverência é prestada àquela mesmíssima URSS em cujos campos de concentração estaria agora encerrado, se já não morto e enterrado, o rebelde de alta categoria que a homenageia, ou seja, o próprio Alexander Dugin.

Uma coisa é entender ou aprovar que a Rússia não cometa contra a URSS a damnatio memoriae que o Ocidente perpetrou contra o fascismo (e continua perpetrando: só lhes resta a reductio ad hitlerum como argumento para defender “a democracia liberal”). Isso é uma coisa. Outra coisa, e bem diferente, é enaltecer a URSS como cometimento dos mais gloriosos da história russa.

(J. R. P.)

Rafael del Moral: O futuro das línguas da Europa

By Rafael del Moral.

A força de uma língua está no número de falantes monolíngues que a mantém viva, como também na quantidade de estudantes interessados em aprendê-la, sem que ninguém os obrigue a isso. Esta demanda justifica a utilidade da língua.

Bruxelas envida esforços para estimular o plurilinguismo, buscando despertar nas pessoas a consciência dele enquanto ferramenta profissional e intercultural, bem assim como forma de preservar as culturas e assegurar sua subsistência. Investe cerca de 30 milhões de euros, anualmente, para promover o ensino de idiomas por meio de programas como o Sócrates e o Leonardo da Vinci, executados pelo Instituto Cervantes e outras instituições reunidas na rede Eunic (European Union National Institutes for Culture). Mais da metade dos europeus pode se entender, com desigual proficiência, falando duas das 24 línguas oficiais da União Europeia. O par mais frequente é formado por uma língua continental mais o inglês.

Devemos lembrar que a relação entre línguas e Estados nem sempre é biunívoca, ou seja, a um Estado podem corresponder várias línguas e vice-versa. Há línguas internacionais, como o espanhol e o francês; línguas nacionais, como o polonês e o húngaro; regionais, como o galês, o catalão e o bretão; locais, como o aranês e o corso. Há línguas decadentes, como o labortano e o suletino, que são variantes do vasconço, as quais aproximam-se da extinção; e há línguas moribundas, a exemplo do cassúbio, em dezenas de milhares de bocas, ou menos, no Norte da Polônia. Algumas línguas servem à comunicação familiar; outras, à vida social ou cultural, quase sempre as mais arraigadas na tradição educativa; outras, ao desenvolvimento científico; outras, ainda, muito poucas, servem a tudo isso ao mesmo tempo.

Nós chamamos as pessoas que falam uma língua própria mais outra adquirida de bilíngues. Causa certa estranheza saber que os europeus herdam duas línguas próprias: uma familiar e outra sociocultural. É o caso do galês que fala inglês, ou do siciliano que fala italiano durante boa parte de seu cotidiano. Esses, nós chamamos de ambilíngues, porque dois idiomas compõem seu patrimônio linguístico. O falante monolíngue, não obstante, serve-se de uma só língua na comunicação familiar, social, laboral, comercial e cultural.

Os falantes monolíngues são monolíngues porque herdaram línguas como o inglês, o espanhol, o francês, o russo, línguas que não precisam do apoio de nenhuma outra língua. Os falantes ambilíngues também contam com uma dessas línguas, porque sua outra língua não é suficiente. O falante de bretão sabe francês, língua também própria, para sair à rua. Este também é o caso do vasconço, que se completa com o francês, no Norte de seus domínios, e com o espanhol, no  Sul.

As línguas expandem-se e se contraem independentemente de qualquer controle, o que não chega a ser estranho. Os usuários buscam eficácia, as línguas que se lhes antojam mais promissoras sob tal aspecto ganham, naturalmente, seu interesse. As línguas que precisam de outras para ampliar a comunicação de seus falantes existem numa condição de submissão, obrigadas ao ambilinguismo, achaque irreversível que não acaba com a língua, mas empana o seu brilho.

Línguas insuficientes

A Europa está salpicada de línguas que vivem na boca de falantes que ampliam suas possibilidades de comunicação graças ao fato de disporem de outra, também própria. Línguas nas mais fortes condições de dependência são o vasconço, o catalão, o galego, o bretão, o galês, o siciliano, o sorábio, o cassúbio, o tártaro, idiomas de isoglossa tão curta que seus falantes utilizam com a mesma destreza o espanhol, o francês, o inglês, o italiano, o alemão o polonês e o russo, respectivamente.

Dependência lamentável em relação ao inglês mostram o danês, o sueco, o norueguês e o islandês, línguas escandinavas presentes nos ambientes familiares, cívicos e sociais, mas não tanto nos meios culturais. Somam-se a esse grupo, pelas mesmas razões, o finês e, em grande medida, o holandês.

Algumas línguas de países da órbita da antiga União Soviética, como o bielorruso e o ucraniano, servem-se do russo. O estoniano, o letão e o lituano tentam se livrar do russo, não sem dificuldades, para se servirem do inglês como língua complementar. A população de etnorrussos coloca-se como pedra no caminho da transição.

As línguas centro-europeias cobrem as relações familiares, sociais e boa parte das culturais de seus falantes, mas não completamente. O que falta fica a cargo do inglês, língua de conhecimento obrigatório em distintos níveis. Elas são o polonês, o checo, o eslovaco, o esloveno, o croata e o sérvio, entre outras. Esses falantes de línguas eslavas mostraram-se todos muito afoitos em trocar o russo pelo inglês, o que também se passou com o romeno e o húngaro. O albanês e o grego também se incluem nesse grupo. Estas línguas contam com mais falantes monolíngues do que as do primeiro grupo e cobrem razoavelmente o seu entorno.

Línguas independentes

Cabe agora referir as línguas livres ou independentes da Europa, aquelas, pois, que mais e melhor têm garantidas as condições de sua sobrevivência e elas são quatro línguas neolatinas: o espanhol, o francês, o português e o italiano, além de uma eslava, o russo. Entre os seus falantes aparecem aqueles que em menor medida se servem do inglês em sua vida diária, ainda que o devam conhecer, nem que seja em nível elementar. E restam duas línguas germânicas também independentes, o alemão e o inglês. Esta última dispensa comentários. Os anglófonos, os mais monolíngues do planeta, alhearam tanto de outras línguas a ponto de esperar que todos se dirijam a eles em inglês.

Pode haver intervenção para manter mais ou menos vivas as línguas que se apoiam em outras, mas nem por isso elas passarão a ser línguas livres. Seu futuro está, pois, menos garantido, porque os falantes buscam o necessário e descartam o acessório de que não precisam.

Se levarmos em conta que a comunicação se unifica, naturalmente, com o ambilinguismo, fica fácil entender que só algumas quantas línguas restarão como ferramentas indispensáveis de seus falantes. Essas são as línguas que estarão na boca de 800 milhões de europeus.

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Fonte: El Manifiesto. Autor: Rafael del Moral. Título original: El futuro de las lenguas de Europa. Data de publicação: 13 de janeiro de 2023. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.

 

Tontos podem sempre ficar mais tontos

Há alguns dias, foi em 8 de dezembro, o diário The Washington Post publicou artigo com o título “Why doesn’t Argentina have more black players in the World Cup?”, ou seja, “Por que a Argentina não tem mais jogadores pretos na Copa do Mundo?”. A autora é uma tal de Erika Denise Edwards, professora na Universidade do Texas, câmpus de El Paso.

Só pelo título do texto já se pode notar duas coisas. Primeira: a confirmação do que diz a letra do tango Cambalache: “qualquer um é doutor, qualquer um é senhor”. Segunda: a ignorância dos ianques a nosso respeito: eles não sabem nada sobre nós.

A autora, uma tonta, adjetivo que fica perfeito nela, não se inteirou de que, na Argentina, a lei do ventre livre data de 1813. Isto se deu, pois, 150 anos antes da aprovação de lei semelhante nos Estados Unidos. Ela não sabe que os pretos se mesclaram com os brancos, não sabe que dessa mescla surgiram os “morochos”. Esse tipo de simbiose foi tão notória que ainda se recitam nas áreas rurais os versos seguintes:

La desgracia de los negros no es tener la piel oscura

La desgracia de los negros es que quieren a las rubias.

A tal professora ignora que “Negro” é palabra afável na Argentina. Aqui os amigos podem se tratar de “negros”, como quando dizem “Está fazendo o quê, negro?” ou “Como vai, negro?”. Existe também a expressão “Negro de merda”, é verdade, mas os liberais é que se expressam dessa maneira e o fazem por referência ao povo peronista. Antigamente, esses liberastas chamavam os peronistas de “cabecitas negras”.

Na Argentina, não existe o problema racial que carcome as entranhas dos Estados Unidos. Se fôssemos acreditar no que vemos nos filmes americanos, seríamos levados a pensar que a população dos Estados Unidos tem a pele escura. A realidade é bem outra. Os negros lá não se caldearam com os brancos. O famoso melting pot não deu em nada. A teoria do crisol das raças não se confirmou. O tal cadinho não fundiu nada e acabou derretendo.

Por isso é que os antropólogos sociais de lá lançaram a teoria do multiculturalismo. Segundo esta, o povo não se pode conceber como uma grande maioria, mas sim como muitas pequenas minorias. Segue daí a política de transfusão racial que vai substituindo a antiga maioria dos brancos anglo-saxões protestantes por negros, hispânicos, italianos, irlandeses, árabes… Minorias e subminorias e minorias de subminorias sexuais também são promovidas (novas letras estão sempre sendo somadas ao legebetário: LGBTQIJX2…). Também minorias cosmológicas são muito bem recepcionadas no espírito da diversidade. Este é o caso, por exemplo, dos terraplanistas.

Nós formamos uma sociedade aberta, livre e contraditória. Vivemos suportando uma inflação anual de 100%. Nosso país tem a segunda maior planície cultivável do mundo, mas os pobres são metade da nossa população. Os recursos pesqueiros do nosso litoral estão entre os mais ricos do planeta. Evidentemente, temos também os governantes corruptos mais aladroados de todo o mundo. Além disso, sabemos que esses bandidos nunca verão o Sol nascer quadrado. Os negros não estão entre os nossos problemas. Nossas contradições são de outra ordem, que não envolve o conflito racial, felizmente.

De qualquer modo, há que reconhecer o interesse e a gravidade da temática racial. Aliás, eu quero fazer uma sugestão àquela tonta do The Washington Post. Proponho que ainda antes do fim da Copa do Mundo, se der tempo, ela publique um outro artigo de denúncia sobre a questão da discriminação racial, mas de perspectiva inversa. O título do libelo acusatório poderia ser este: “Por que a seleção do Congo não tem jogadores brancos?”.

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Fonte: BUELA, Alberto. Artículo breve [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <chauke.filho@yandex.com> em 13 dez. 2022. Autor: Alberto Buela (um arkegueta, aprendiz constante). Título original: Siempre se puede ser un poco más tonto. Telecorreio do autor: buela.alberto@gmail.com. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.

O “putsch” de Reuss na Alemanha

Suponho que o leitor esteja informado dos estranhos acontecimentos que se passaram na Alemanha, recentemente, quando o príncipe Henrique XIII de Reuss e uma vintena de seus conspiradores foram detidos pela polícia política do regime dominante em Berlim. Toda a mídia do sistema dedicou suas manchetes ao suposto pronunciamento de um conciliábulo de radicais de direita empenhados em subverter a sublime ordem da República Federal da Alemanha, a qual serve de modelo para todas as democracias modernas.

Espanta, mas encanta, a reaparição na história do minúsculo e extinto Principado de Reuss, cuja linhagem foi fundada por Erkenberto, senhor de Weida. O imperador Henrique VI decretara que todos os descendentes varões dessa casa chamar-se-iam Henrique. Até o ano de 1300, esses príncipes, que dominavam Weida, Gera, Schleiz e Plauen, foram conhecidos como “Reussen”, ou seja, “Russos”. Isso se deveu ao matrimônio de Henrique de Plauen com Chwihowska, filha de Brzetislav IV Chwihovsky e da princesa ruríquida Maria. No século XV, passaram a ter assento no Colégio de Príncipes do Sacro Império Romano-Germânico como burgrávios de Mísnia. Algumas gerações depois, a casa de Reuss se dividiu em três ramos e conseguiu sobreviver a Carlos V, a Luís XIV, a Frederico o Grande, a Napoleão, a Metternich e a Bismarck. Até 1918, os príncipes de Reuss foram cabeças de gato [ou cabeças de rato, isto é, chefes menores, mas autônomos, por oposição a “colas de león”, ou seja, rabos de leão, metáfora do ditado espanhol para significar chefes menos autônomos de poderes maiores (n. do trad.)] do II Reich, quando seu pequeno Estado se dissolveu na Revolução de Novembro. Todas essas referências, eu as colhi do Almanaque de Gotha, mais confiável do que as tendenciosas e infectas Wikipédias da vida. Os meus familiares mais antigos e tradicionais me diziam que o melhor guia para o conhecimento das coisas da bonne compagnie [círculos sociais da nobreza], guia infalível mesmo, era o velho almanaque de Justus Perthes, o referido Almanaque de Gotha. Não duvido, eu sou fiel às palavras, tradições e preconceitos de meus antepassados. O pequeno problema é que o Gotha deixou de ser publicado na II Guerra Mundial e meus dados possivelmente estejam desatualizados. Melhor assim.

O caso é que, neste último mês, as redações de periódicos alemães começaram a receber informes da polícia política dando conta de uma operação secreta em curso contra um perigosíssimo núcleo de conspiradores, formado pelo príncipe Henrique e uma vintena de zelotes. Foi dado destaque especial à presença da juíza Birgit Malsack-Winkemann na célula subversiva. Ex-deputada do AfD [Alternative für Deutschland: Alternativa para a Alemanha, partido de direita da Alemanha (n. do trad.)], essa senhora foi representada como uma perigosa terrorista, uma Calamity Jane, una Monja Alférez, uma Bonnie sem Clyde, una Hanna Reitsch, uma espécie de Lara Croft. Apesar de um pouquinho avançada em anos, já quase na melhor idade, as credenciais que lhe confere seu conhecimento das artes marciais e da operação de comandos especiais, além de sua habilidade como franco-atiradora, capacitaram-na para tomar de assalto (sozinha!) o Bundestag, “informa” a mídia escrota do regime alemão. Nunca se viu uma trama tão bem ideada desde aquela do famoso Walter nos tempos de O Grande Lebowski. O plano era genial e só a traição de um delator pôde arruiná-lo: cerca de setenta macróbios alemães iriam tomar o controle de um país com 80 milhões de habitantes.

Claro que as perguntas não tardaram. O chanceler social-democrata Scholz não pode deixar de ser parabenizado por haver salvo a democracia alemã — e toda a Europa — de tão perigosa circunstância, mas algumas questões não foram bem explicadas. A primeira é que um segredo conhecido de todas as redações dos periódicos não é um segredo. Qualquer operação verdadeiramente grave é levada a cabo sob rigoroso sigilo, não é anunciada até no Bild. A polícia política do regime alemão cometeu falha grave ao dar tanta publicidade a uma diligência tão delicada. Por outro lado, um putsch de verdade, como aquele de Kapp (1920) ou Hitler (1923), se organiza com o apoio do exército, ou de parte dele, por questão bem simples: sem o apoio dos militares, qualquer intentona golpista está destinada a fracassar. Quando se tenta derrubar um regime pela força, o que não pode faltar é isso mesmo, ou seja… Força. Não que escasseassem militares na reduzida e seleta tropa do príncipe Henrique, na Agincourt particular do prince Harry de Reuss, mas eram velhos milicos já reformados e sem acesso a nenhum armamento mais pesado do que a barriga deles. Sem dúvida, a democracia europeia corre perigo de subversão violenta, haja vista a recente onda de atentados por carta-bomba aqui na Espanha e os golpes de Estado na Alemanha. Devemos, pois, reforçar os poderes da polícia secreta para vigiar a tresloucada militância da extrema direita. Em lugar de atacar os moinhos de vento do islamismo, o melhor a fazer é combater as odiosas realidades das conspirações soberanistas. Estas, sim, devem estar no centro de nossas preocupações como objeto de nosso mais veemente repúdio.

Curioso, também, é o pensamento do príncipe Henrique: conforme este aristocrata, o Principado de Reuss foi suprimido de forma ilegítima por um golpe de Estado (a Revolução de Novembro de 1918), e a atual Alemanha, além disso, não é Estado soberano, pois segue ocupada por seus vencedores ianques, que mantêm a enorme base de Ramstein (50 mil homens), além de outras em Ansbach, Pirmasens, Husterhohe, Weilimdorf e Wiesbaden. A situação colonial da Alemanha decorre do Tratado de Paris (1947), que impôs as condições draconianas da paz, quando já não havia nenhum Estado alemão independente com o qual negociar. A própria Lei Fundamental de Bonn renegava a soberania nacional e a cedia às potências ocupantes, no caso de existir um regime que não fosse do agrado dos vencedores.

A Alemanha que rechaçou há um século o Diktat de Versalhes assume hoje com íntima e firme convicção sua condição de escrava dos Estados Unidos. Um dos grandes erros de Stalin foi pensar em reconstruir a nação alemã, unida e neutra, depois da Guerra.. Nem os anglo-saxôes nem os seus lacaios, como Adenauer, um antigo separatista renano, estavam dispostos a isso. E continuam não querendo uma Alemanha livre. Nessas condições, o príncipe Henrique exige que se restaure um Estado alemão soberano, que lhe seja devolvido Reuss, e que se estabeleça um processo constituinte na Alemanha, concomitantemente ao estabelecimento de verdadeiro tratado de paz com as grandes potências.

Eis o verdadeiro crime do príncipe Henrique: desejar devolver a independência e a soberania à Alemanha. No momento em que Scholz sacrifica a indústria e o bem-estar dos alemães aos interesses dos Estados Unidos, alguém pode imaginar o impacto que pode ter a pitoresca negação da submissão teutônica aos interesses ianques? Não haverá alemães que agora perguntam por que devem sacrificar seu presente e seu futuro no altar dos objetivos puramente egoístas dos Estados Unidos? Não haverá alemães buscando entender o porquê de a Alemanha se encontrar desarmada, quando sofre guerra comercial de Washington, que lhe ataca com verdadeira sanha? Ainda que não seja mais a nação ganhadora dos prêmios Nobel, decerto haverá ainda alguns crânios dolicocéfalos na Alemanha, sobretudo no Leste, que possam conceber a arriscada ideia de recuperar a independência nacional e pôr abaixo o vergonhoso edifício social-democrata, cujo vigamento tem base nas crateras escavadas pelas bombas dos ocupantes ianques. Eles existem, sim, e parece que são cada vez mais numerosos. Essa é a chave para o entendimento do episódio que a mídia representa como estranho e atentatório, buscando demonizar o inofensivo e excêntrico príncipe Henrique. Trata-se de uma mensagem de advertência que o regime alemão manda para os patriotas e dissidentes mais sérios.

Fonte: El Manifiesto. Autor: Sertorio. Título original: El “putsch” de Reuss en Alemania. Data de publicação: 11 de dezembro de 2022. Versão brasilesa: Chauke Stephan Filho.